NUNO MINDELIS
O ganhador do Grammy de melhor álbum de Blues contemporâneo/2017 é um grupo que atende pela designação de Fantastic Negrito. Esperemos que as patrulhas que se dedicam a extirpar expressões supostamente incorretas (nas marchinhas de Carnaval, na literatura, Monteiro Lobato x Tia Nastácia etc) não decidam trocar-lhe o nome, porque quem o escolheu com orgulho foi o seu líder, Xavier Amin Dphrepaulezz (aqui já torço para o Trump não deportá-lo, seja pelo nome ou pela origem Somali, o mundo está ficando realmente um lugar muito complicado).
Xavier nasceu em Massachussets e é o oitavo filho de 15 irmãos. Sim, você leu certo. Fifteen!
Aos 12 mudou-se com a família para Oakland (que foi durante muito tempo o bairro mais perigoso de S.Francisco, não sei agora) . Ele chegou a usar armas e vendia drogas entre outras atividades light, auge da cracolândia por ali.
Impressionado com Prince decidiu aprender como se fazia a coisa e entrava às escondidas na Berkeley University, um penetra nas aulas de música. E por aí vai, vale a pena conferir a história sinuosa de Dphrepaulezz (soletre comigo !) que largou a carreira (por período razoável) em certa ocasião e esteve em coma em outra.
A primeira sensação ao ouvir o trabalho foi a de não vislumbrar um disco de blues e não compreender bem o Grammy em categoria a ele dedicada. Mas é a tal coisa, certas obras (as que interessam, na verdade) requerem leitura. Foi só a primeira sensação, felizmente. Logo passou. O fato é que o slide guitar anda por ali, os riffs típicos também, a alta carga soul e rhythm blues, os vocais gospel. E, de repente, surge uma guitarra blues tradicional bem feita, sem pretensões, en passant, mas muito bem feita. Então acabamos por aprender que o blues contemporâneo, para a Academia pelo menos, é mais isso do que o álbum do Bonamassa ou do Derek Trucks feito anteontem. E fico feliz em ver que algo que preconizo faz muito tempo começa a materializar-se: se você quer quebrar as regras deve conhecê-las muito bem, ou fará algo minimamente inócuo e, no limite, tenebroso. E Fantastic Negrito conhece bem as regras.
Working Poor, a segunda faixa (que é a primeira de fato, já que o que vem antes é um depoimento melódico de 35 segundos) dá uma dica do gênero do Delta de menos de um segundo, na primeiríssima nota. Fosse o caso de não encontrá-lo antes, a faixa 5 What Do You Do não deixa dúvidas de que é o elemento central. A guitarra em Hump Thru the Window também não . É possível (com algum carinho) lembrar da pancada do Mr. Hoochie Coochie Man, versão século 21, em Lost in A Crowd. Mesmo que envolta por um refrão com piano e vocal melódico e adocicado à (quase) Coldplay ou Beatles. Com um orgão Hammond de timbre irretocável tocado de forma simples ao fundo. Legal! Aliás, aproveitando, Hammond bem usado é uma constante deliciosa. E talvez por isso a coisa toda me lembre aqui e ali do gênio Sly, de Sly & The Family Stone.
A faixa 6, The Nigga Song (atenção patrulhas, nigga não né? Chama o Janot!), é blues novo sim. Alguém pode não gostar, especialmente puristas, mas é. Em In The Pines (que Nirvana gravou como Where Did You Sleep Last Night) a guturalidade e pungência do lamento atigem outro nível e as palavras My Girl, que iniciam quatro dos cinco versos da letra, foram substituídas por Black Girl. El Chileno é um blues estilizado (como quase todos) em 41 segundos, com algum texto em espanhol. Nothing Without You é um petardo soul de calibre que honra Otis Redding e Al Green.
Ainda não sei qual a minha faixa predileta. Working Poor? The Worst? Nothing Without You? Ainda bem, né?
Abraço, pessoas antenadas !
1 Comment
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Leonardo
22 de março de 2017 at 12:28
Obrigado Nuno por compartilhar mais uma excelente dica….