Há um tempo alguém me falou que preferia o Emicida fazendo clipe no estilo de Boa Esperança, lançado em 2015. As imagens mostram pessoas negras como empregadas, servindo pessoas brancas e claramente eles não tão aturando mais aquela gente chata. Eles têm consciência de que não merecem ser humilhados e se revoltam. Quebram tudo, expõe sua raiva mesmo, no estilo fogo nos racistas. A letra acompanha esse sentimento.
O clipe é extenso e conta uma ‘história’, obviamente retratando vidas reais. Enfim, nela, as pessoas negras não aceitam mais se submeter. Ponto um: a consciência gera revolta, e desencadeia outras. É possível conferir ao término do clipe quando uma jornalista anuncia manifestações em diferentes locais do País, no efeito dominó.
Mandume
Em dezembro do ano seguinte foi lançado o clipe intitulado Mandume (rei angolano que resistiu às invasões europeias). De oito minutos, conta com muitos feats (Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike, Raphão Alaafin).
O refrão abre a música de Emicida. “Eles querem que alguém que vem de onde nois vem seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide. Finja que esqueceu a coisa toda, eu quero que eles se exploda”.
Aqui, vemos as pessoas negras que sabem o que sua identidade significa na sociedade e se aceitam em sua totalidade. Mostram uma mistura de autoconfiança com ação.
No clipe, eles substituem as capas de revistas, que insistem em retratar pessoas brancas e assuntos zzzz. Mostram que não mais engolem esse padrão. Ponto dois: o movimento foi além da revolta, gerou uma luta contínua, uma ação constante.
Eminência Parda
Neste ano, em maio, Emicida lançou Eminência Parda. E eu que não vi nenhum pardo no clipe fui procurar se o nome tinha algum significado. Sim! Segundo breve definição do Wikipedia, “em política, eminência parda é o nome que se dá quando determinado sujeito não é o governante supremo de tal reino ou país, mas é o verdadeiro poderoso, agindo muitas vezes por trás do soberano legítimo”. Sem comentários, né?
Enfim, no clipe é retratado uma família preta que está a caminho de um restaurante para comemorar o término da faculdade de sua filha e o intercâmbio que já está marcado. Dá para ver que o jantar está muito prazeroso, eles estão interagindo, se divertindo, se amando.
Porém, em outras mesas pessoas brancas olham torto, e em flashs do clipe enquanto a família está rindo e confraternizando, os brancos se mostram incomodados e com visões distorcidas da realidade, que podem ser entendidas como os estigmas que colocaram sobre a pele negra.
Algumas dessas imagens são eles devorando a comida, como se fossem selvagens; imagens deles como empregados, como ladrão.
Uma hora é retratada a filha do casal entretendo dois homens com uma dança sensual e eles estão vidrados nela. Essa cena é muito pesada porque descreve a hipersexualização da mulher negra como atrativo ao homem branco e mais nada.
Todas essas cenas são oriundas da cabeça das pessoas brancas ao redor, enquanto a família continua lá se divertindo.
Estigmas
Aqui o bagulho pega, os olhares tortos, a matança, os estigmas aparecem em todos os momentos. No minuto final os irmãos se encontram acorrentados, e ao término do clipe a família está morta, em uma cena que nitidamente dá pra entender que foi um assassinato. Eu lembrei do episódio dos 80 tiros. Igualmente do nome daquela minissérie Olhos que Condenam (Netflix), que ainda não tive coragem de assistir.
Comparações nos vídeos de Emicida
Nesse clipe, mesmo com todas as críticas e cenas tristes, a família preta estava se divertindo, vivendo. Então por que eu ouvi que preferia ter um clipe como Boa Esperança, ao invés de Eminência Parda? Por que comparar os dois clipes de Emicida? Não acredito que seja apenas questão de gosto, até porque muitos gostos são construídos.
Para mim, Boa Esperança é um clipe de revolta, falar sobre as discriminações. Em Eminência Parda, a família negra simplesmente está vivendo, comemorando uma conquista e eles não estão enfrentando os olhares, porque o problema está em quem olha não em quem é olhado.
Fica o questionamento: só é legal ouvir ou assistir algo de artistas negros se estiverem fazendo críticas e não falando de sentimentos, vivendo conquistas? Será que não é uma ideia errada achar que o artista negro só deve representar clipes de revolta, de cansaço, de denúncia ao racismo somente do lado do oprimido?
E chego ao meu ponto três: para além do discurso, a pessoa negra ocupando os mesmos espaços e poucas, usufruindo de sua luta constante .
AmarElo
Aí, um mês depois Emicida lança AmarElo. E na minha visão há uma conversa íntima entre esta e Eminência Parda na seguinte frase: “permita que eu fale, não as minhas cicatrizes, pois me resumir à sobrevivência é o pior dos crimes, é dar o troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir”.
É um trecho simbólico, pois o que as pessoas brancas fizeram no restaurante foi resumir aquela família feliz, comemorando sua conquista, com seus filhos, às cicatrizes (a escravização do povo), as marcas tantos sociais como a pobreza, o confronto com a polícia, quanto psicológicas, como o complexo de inferioridade, pois o racismo atinge todas as esferas de vida do indivíduo, seja em menor ou maior grau, consciente ou inconscientemente.
AmarElo também conversa com as pessoas que preferem clipes do tipo Boa Esperança, porque falar só de dor, só de racismo, de opressão, é resumir a pessoa a um ser com reivindicações, mas sem identidade própria, não pode ser plural, sabe? Não é usufruir do seu discurso.
Mensagem final de Emicida
A música começa com um resgate à música de Belchior e quando Emicida inicia sua fala, solta a seguinte frase: “eu sonho mais alto que drones“.
Porque apesar de toda a dificuldade, de todo preconceito enfrentado (e aqui não to falando em meritocracia e sim resistência- um ato contínuo de permanecer em espaços e emoções que não “foram feitas pra você”), ele é mais que isso, é uma pessoa que sonha, almeja, tem perspectiva de futuro e pede para que deixem ele assim como outras pessoas pertencentes às ‘minorias’ terem o direito de serem mais que marcas, do que discurso, pessoas.
Nem todo dia a pessoa que tem consciência de sua negritude está bem para falar sobre as discriminações, às vezes cansa, adoece e a pessoa só quer respirar sem ser alvo de olhares, sem se preocupar se tem outros semelhantes levando 80 tiros por querer se divertir.