Reza a lenda que, muito antes de Jimmy Page, um brasileiro surgiu num palco acompanhado por guitarra de três braços – a tritarra, tendo em cada pescoço afinações e quantidades de cordas diferentes. A ousadia foi transmitida ao vivo durante o Festival Internacional da Canção (FIC) e provocou alvoroço no restrito circuito roqueiro tupiniquim de então. Em época similar a Syd Barret, ele também saiu da cena musical por passagens sem volta ao universo paralelo fabricado pelo (abuso de) LSD e outras substâncias.
Façanhas que dão a Jorge Amiden, uma das pedras fundamentais de O Terço, o ingresso à categoria de mito do rock. E bagagem para produzir um dos mais interessantes registros de Psych Folk da década de 1970. A pérola é o único álbum do Karma, power-trio de rock rural que explorou harmonias vocais e de cordas, numa linha totalmente distinta do pop nacional daquela época – que, ainda hoje, foge completamente de qualquer estética musical.
Comum ao fundador do Pink Floyd, Amiden também deixou a banda que formara por cizânias aprofundadas pelo abuso de substâncias psicoativas. Após romper com O Terço, no final de 1971 – quando eles produziam um casamento desplugado de rock e música clássica –, não demorou em recrutar um novo bando. O grupo contava com Luiz Mendes Junior no violão e Alen Terra no baixo.
Compacto de 1971 de O Terço
Tido como o arquiteto harmônico e vocal da superbanda carioca (e também do Karma), ele recebeu carta branca da RCA para um Long Play. Nos estúdios, o trio convocou o baterista da Bolha, Gustavo Schroeter, para as gravações. O trabalho chegou às lojas menos de 12 meses após a traumática ruptura. E teve vida tão curta quanto à de seus criadores. O Karma se desfez pouco tempo após o lançamento do álbum, que caiu no ostracismo, destino comum da esmagadora parte da produção brasileira daquele fértil período.
Era época que roqueiro sob os trópicos ainda tinha um quê de alquimista, mago e arquiteto. A (perdida) arte de luthier tornava-se a rara alternativa para ter equipamentos atualizados e no patamar das estrelas internacionais (por isso, Amiden construiu a tritarra). Outro caminho seria submeter-se a importação clandestina de instrumentos – como a tragicomédia forma em que Rita Lee trouxe um Melotron, após turnê com Os Mutantes pela Europa.
A estética do singular trabalho do Karma está impressa desde a capa, na qual se reproduz um vitral dos músicos com seus respectivos instrumentos a tira colo – numa clara referência às letras repletas de alusões religiosas, emulada no tipo de arte ligado às igrejas.
Único álbum do Karma, um dos clássicos perdidos do BRock
No disco (acima), destacam-se os belos arranjos vocais e canções envolventes, com o auxílio de gaita, flauta transversal e cravo. Como na sequência da progressiva ‘Epílogo’ e a clássica ‘Tributo ao Sorriso’, que fecham a primeira metade da bolacha. Essa última música foi defendida no ano anterior pelo O Terço (na aparição da tritarra) e regravada por uma porrada de artistas. A versão segue em capela até os instantes finais, quando os instrumentos finalizam numa obra lírica.
O lado B continua no mesmo patamar transcendental. As músicas seguem a receita do rock rural, uma versão (melhorada e) abrasileirada do folk psicodélico. As harmonias angelicais se fundem de forma orgânica às hipnóticas passagens acústicas, com doses bem temperadas de balanço na percussão.
E respirando ecos de Tommy, o álbum é sequenciado com transições sutis, costurado por arranjos de cordas de alto nível numa trama sonora inspiradora. O disco se encerra com ciclo psicodélico sem desvirtuar do equilíbrio do resto das composições.
A gema perdida da fonografia se deve, em grande parte, à produção e orquestração de Arthur Verocai. É dele, por exemplo, algumas soluções no estúdio, como o uso de instrumentos eruditos e barrocos para suprir os sintetizadores – tão em voga à época. Os arranjos de cordas são de alto nível, casando completamente com o rock acústico.
Primeiro trabalho de Arthur Verocai
E os trabalhos nos bastidores para o Karma seguiram com a gravação de seu primeiro (e clássico) disco solo. Lançado no mesmo ano, o álbum mescla jazz, bossa-nova e experimentações diversas, que o coloca na galeria psicoativa do Brock. E como toda a vasta (e obscura) discografia desse período, não teve aceitação do público e viveu décadas de ostracismo – nesse caso, foi redescoberto anos depois por rappers norte-americanos.
Fã de Amiden e responsável pelo único registro oficial da banda, Ramalho Neto escreveu uma espécie de manifesto do grupo na contracapa do álbum. O curto texto do diretor artístico da RCA é totalmente inspirado pelos ares da Era de Aquário.
“O Karma é alma, espiritualidade, imortalidade, elevação, Índia, Londres, Califórnia, New York, Rio de Janeiro, Ipanema, Gurus, Krishina, Amor Maior, incenso, Forma, Cores, Som. No Brasil (o Karma) é tudo isto e também muitos anos à frente do que virá musicalmente”. Hipérboles à parte, o resultado soa tão contemporâneo quanto às novas safras nacionais e internacionais do Psych Folk.
Depois do Portal, canção defendida na FIC-1972
Após o lançamento do álbum, o trio defendeu Depois do Portão no VII Festival Internacional da Canção. Jorge Amiden ainda gravaria com Erasmo Carlos o (sensacional) ‘Sonhos e Memórias’. E fez parte da banda de Milton Nascimento. O Karma atravessaria a jornada conjunta por apenas alguns meses adiante, até a derradeira viagem de Jorge Amiden para atingir o samsara (estado metafísico que pode ser resumido como o fluxo incessante de renascimentos através dos mundos).
Numa mistura de bebidas com drogas pesadas, Amiden perdeu o controle do cérebro. Distante da realidade, ele produziu solos de guitarras intermináveis no ato final da trupe e submergiu num plano existencial paralelo. Retornou a realidade apenas no dia seguinte, mas alguma coisa não fazia mais sentido. Perdera o interesse pela música. E afastou-se da vida artística logo após transcender o carma, num dos mais belos e antológicos discos da história do rock brasileiro.