Um meteoro multicolorido iluminou o tom acinzentado no instante que os Anos de Chumbo demonstravam sua face mais violenta, fria e opressora. A liberdade criativa e o eterno tabu do alvedrio sexual estavam expostos sobre a mesa, como feridas ainda ardentes; num momento de endurecimento (porque não empobrecimento!) político e ideológico, cujas (nefastas) cicatrizes ainda estão enraizadas no imaginário coletivo. A rica poesia acentuada por delicadas e simples composições empurraram João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad no epicentro do furacão fonográfico tupiniquim.
Servido sob bandejas, o trio realizou a mais fantástica história de sucesso meteórico da música brasileira. Compôs um clássico incontestável da rica fonografia nacional e uma pérola do rock mundial. Porta-vozes dos pós-hippies num momento de desbunde da juventude e hibrido de glam rock com pitadas de progressivo/ psicodelismo, Secos e Molhados abriram caminho para a segunda dentição do roque brasileiro.
A reboque de clássicos instantâneos, como Sangue Latino, O Vira e Rosa de Hiroshima, o trabalho inaugural do grupo provocou o pioneiro fenômeno de massa da indústria musical brasileira. Sucesso a qual nem os músicos e tampouco os engravatados da gravadora Continental imaginavam. Culpa da fenomenal roupagem sonora e do time montado para dar vida às composições, captadas em modestos quatro canais de áudio.
Apresentação na extinta TV Tupi
A bomba colorida de inspiração foi gravada em apenas 15 dias, numa maratona de seis horas diárias de sessão. A produção e os arranjos foram lapidados de forma colaborativa entre o trio e músicos como Zé Rodrix (ex-Momento Qu4tro, Som Imaginário e Sá, Rodrix e Guarabyra), John Flavin (que entraria a bordo da Patrulha do Espaço, capitaneada pelo ex-Mutante Arnaldo Baptista), Willie Verdaguer e Marcelo Frias. Esses últimos integraram a (sensacional) Beat Boys, banda argentina que acompanhou Caetano Veloso nos primeiros trabalhos e que – ao lado d’Os Mutantes –, provocou ruptura ao utilizar guitarras no Festival da Canção em 1967 – ambiente até então dominado pelo violão.
A obra-prima cruzou o pós-tropicalismo, progressivo, folk e fado – esse último, herança genética do português João Ricardo. É tão enraizado o hibridismo sonoro, que críticos ainda hoje não sabem como classificá-lo (como se música fosse remédio para ser encaixotada em rótulos). E as fortes letras traziam explícitas mensagens sociais, resumidas nos (estupendos) poemas de Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa (esse, no segundo LP). Cantada de forma visceral, os politizados versos traduzem o histórico da fase em que a juventude teve os direitos dizimados pelo brutal golpe (e hoje, há algo de novo no front?).
As sutilezas e nuances de porradas como Patrão Nosso de Cada Dia, O Amor e (a progressiva) Primavera nos Dentes incluem o trabalho entre as melhores safras da música brasileira. A revista Rolling Stone Brasil posicionou o Long-Play na quinta posição na sua (duvidosa) lista dos 100 maiores da MPB. E ficou no 97º posto no Los 250: Essential Albums of All Time Latin Alternative – Rock Iberoamericano – listagem essa com ênfase quase exclusiva aos trabalhos de língua espanhola, dada a barreira idiomática entre nossos vizinhos.
Trecho da antológica apresentação no Rio
A tiragem inicial do LP, extraída em agosto de 1973, teve apenas 1.500 cópias prensadas – o que pagaria os custos de produção e hoje são consideradas raridades pelo rico encarte duplo e grafia errada no nome de Ney. As bolachas simplesmente sumiram das lojas em questão de horas após a apoteótica exibição no dominical ‘Fantástico’, ainda sobre o impacto provocado pelo visual e gestual sexualmente agressivo do trio.
No final daquele ano, o grupo venderia mais de 800 mil álbuns (os números oficiais beiram a 2 milhões), desbancando Roberto Carlos e arruinando o acervo do selo, até então voltado ao universo rural e folclórico brasileiro – na ocasião, o planeta vivia a crise do petróleo, matéria-prima do vinil, e para atender a crescente demanda a alternativa foi derreter discos encalhados.
Foi o pioneiro grande volume de vendas gerado por uma empresa genuinamente nacional, num mercado dominado por gigantes holandeses, ingleses e dos EUA. O fenômeno despertou o interesse de gravadoras para o rock sobre os trópicos, abrindo as portas para público mais heterogêneo e pavimentando o caminho para a geração 80.
Era o primário sucesso comercial de um grupo com som voltado aos mais novos após a explosão (imposta pelo marketing) da Jovem Guarda. Bandas como Assim Assado (cujo nome e capa deixavam explícitas a inspiração), Achados e Perdidos, Pão com Manteiga, Barca do Sol, Joelho de Porco, Made in Brazil, Terreno Baldio, Casa das Máquinas e Som Nosso de Cada Dia (essas últimas formadas por ex-Incríveis) tiveram mais facilidade para fechar contratos com gravadoras. Maioria assinou com a Continental, que teve papel primordial para consolidar o roque brasileiro.
O DNA do Secos e Molhados nasceu no começo da década de 1970. Os vizinhos João e Gerson montaram uma banda de garagem, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. E a glória da Eric Expedição (nome dado ao duo) foi uma nota no extinto jornal Última Hora. Porém, logo se separou. Gerson estava envolto nas pressões familiares para concluir o ensino superior em Arquitetura. E João ganhava a vida como jornalista.
João Ricardo fala sobre o S&M
https://www.youtube.com/watch?v=S_F-o0nH20M
Mas o bicho do rock já os havia picado. Numa viagem a Ubatuba, João se deparou com um comércio, misto de boteco com pequeno mercado, que no passado era comumente chamado de Secos e Molhados. Era o nome que tanto buscava para sua imaginária banda, que naquela ocasião apenas tinha ele como integrante.
Gerson retomou a vida musical. E sob a influência do folk, popularizado pelo Crosby, Stills, Nash & Young, Creedence Clearwater Revival, e do rock romântico do escocês Donavan, a dupla gozou de relativo sucesso no underground paulistano.
O som era mais aproximado do conceito que estamparia os dois primeiros trabalhos da trupe. Mas, João ainda achava que faltava algo: uma voz masculina aguda para contrapor às violas, gaita e percussão. A cantora Luli, que fez dupla com Lucina, indicou um ator e ex-artesão hippie com timbre de contratenor. Nascia ali uma estrela rara.
Após um ano de ensaio, o trio faria sua estreia no teatro Ruth Escobar. E caiu como uma bomba. A banda se inspirou no milenar teatro japonês – o Kabuki – para grafar a marca registrada do grupo. Conta a lenda que o símbolo aconteceu por acaso. Vindo de um ensaio teatral, Ney não teve tempo de tirar a pesada maquiagem, o que despertou a ideia de todos vestirem “máscaras” nas apresentações. Depois disso, tudo aconteceu rápido demais.
Após o lançamento do disco, eles saíram do semi-anonimato nas obscuras noites paulistanas para duas apresentações seguidas no Maracanãzinho lotado. Estima-se que mais de 60 mil pessoas foram àquele apoteótico show, que gerou um dos mais raros bootleg da fonografia brasileira. E o estrelato prematuro deixou marcas profundas.
Bootleg da apresentação no Maracanãzinho
O estrondo midiático e a maratona de shows – com direito à turnê internacional – acenderam a fogueira das vaidades. E o grupo se dissolveu no dia seguinte ao lançamento do segundo trabalho, que saiu com 300 mil cópias pré-vendidas. Ney e Gerson – os únicos membros que ainda se mantiveram numa relativa amizade – culpam a ganância de João Ricardo.
A versão dada pela dupla é que o sócio-fundador exigiu para si o controle do grupo e maior parte nas divisões monetárias. E repassou ao os dois papéis secundários na consolidação dos trabalhos futuros. Trocando em miúdos, Ney e Gérson seriam apenas músicos contratados do grupo. João, por sua vez, pouco comenta sobre o período e se recusa a dar entrevistas acerca do fim do S&M, o qual auto-intitula dono. Em 2013, ele postou alguns vídeos no youtube com as suas versões.
Após a brutal ruptura, Ney Matogrosso subiu sem escala para o primeiro time da música popular brasileira. O ex-hippie que defendia uns trocados como ator em peças infantis era uma estrela de brilho raro, antes mesmo de chocar o moral e os bons costumes tanto defendidos pelos militares. Foi o que mais rápido assimilou o íngreme desfiladeiro com o traumático desfecho. Como fênix, emergiu das cinzas. E no ano seguinte, esculpiu um clássico do psicodelismo nacional, com letras pesadas e críticas ao tenebroso momento político-histórico brasileiro. Mas isso é assunto para a próxima semana.