Um meteoro psicoativo rajado com milhares de tonalidades sacudiu a patriarcal capital de Pernambuco na década de 1970. Ocasião que Recife, mesmo isolada do restante do mundo, tornou-se o epicentro do psicodelismo. E o Verão do Amor temporão em tanto contribuiu para a música popular brasileira, ao ponto de o seu sócio-fundador Geraldo Azevedo o considerar o terceiro ciclo evolutivo da MPB, atrás apenas da Bossa Nova e Tropicália – eu, particularmente, divido a epopeia pernambucana com os mineiros do Clube da Esquina.
Sob ecos tardios dos escritores Beatnik’s e uma pegada pós-tropicalista, a junção cabalística que colocou no mesmo balaio música, teatro, artes visuais, poesia e dose extra de atitude recebeu a acunha de Udigrudi, corruptela abrasileirada para a expressão Underground. Rico cenário que ajudou a construir a identidade do psicodelismo brasileiro, mesmo de forma desfragmentada na época de sua formação, e que hoje derrete a cabeça dos mais aficionados fãs do sub-gênero do rock´n roll nos quatro cantos do planeta.
Embora curtíssima, a discografia da Pernambucália (outra forma como o movimento foi batizado) gestou alguns dos mais interessantes álbuns de rock brasileiros de todos os tempos – mesmo que Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, seja apontado como a expressão mais radical do psicodelismo cabra da peste. Dentre os clássicos da insurreição recifense, destaca-se um raro mix de folk-rock-psicodelia tendo como base as inúmeras nuances dos ritmos tipicamente nordestinos: o único e sensacional trabalho de Flaviola e o Bando do Sol.
O álbum foi lançado em 1974 pelo selo Solar, criado por Lula Cortês para prensar o mítico Paêbirú e dar vazão ao cenário independente que se formava longe do eixo Rio-SP. O trabalho teve distribuição pela lendária Fábrica de Discos Rozenblit.
Palavras – Flaviola e o Bando do Sol
Basicamente acústico, na base de violões, violas, guitarras, flautas e percussão, em belíssimos arranjos instrumentais e rica poesia, o disco reuniu a nata de músicos que consolidou o agreste psicodélico setentista: participam do álbum Flávio Lira (o Flaviola), Lula Côrtes, Paulo Raphael (guitarra da lendária Ave Sangria e que acompanha Alceu Valença desde a década de 1970), o mago Robertinho do Recife e Zé da Flauta.
O material é um dos mais expressivos daquele curto, porém, riquíssimo momento da música pernambucana (que até hoje continua se reinventando). Era a fusão perfeita do rock mais ácido com ritmos populares do nordeste e experimentalismo. Mix sonoro que proporcionou momentos alucinantes, místicos e melancólicos.
A anárquica experiência fundiu cítara e alaúde com guitarra fuzz e sintetizadores, sem deixar de lado o alicerce do frevo característico com orquestra de pau e cordas (violão, cavaquinho, banjo, instrumentos de sopro e de percussão).
O Tempo – Flaviola e o Bando do Sol
E o trabalho é recheado de ousadia as invenções sonoras para driblar as limitações técnicas dos precários estúdios de então. Talvez, sejam essas dificuldades que mergulham o álbum num abismo psicoativo embalado com profunda filosofia existencialista e acompanhado de poetas do naipe de García Lorca.
Obscuro e experimental, o disco abre com um folk instrumental a lembrar os mais incautos que a vida é perene: Canto Fúnebre. A faixa é a que mais remete ao clássico perdido do movimento pernambucano, que foi o debute de Zé Ramalho. Uma hipnótica flauta extrai notas tortas e misteriosas; numa espécie de transe xamânico.
Como a um mosaico multifacetado, as duas faixas seguintes – O Tempo e Noite – completam a abertura instrumental, numa única canção paginada em três movimentos. Elas enveredam por poéticas introspecções (sonora e literal) acercas das desilusões típicas da juventude. E trazem tons sombrios metafísicos sobre os questionamentos da alma.
E o lado A se encaminha para o fim com outra trinca costurada entre si. Desespero, Canção de Outona e Do Amigo narram o saltos e baixos dos labirintos do vazio da existência, num desesperado grito de socorro sobre as dores da solidão. E a esperança retorna com um dos mais belos poemas sobre amizade que se mantém inabalada frente aos mistérios da jornada que é viver. Lindo e revigorante.
A segunda metade da bolacha abre com outro instrumental, Brilhante Estrela. Uma espécie de mantra para despertar do transe introspectivo do lado A. E serve de ponte para o flerte com as tradições nordestinas, num balaio interessantíssimo de frevo e os acordes dissonantes do psicodelismo. O álbum fecha com uma adaptação de García Lorca, Romance da Lua Lua (extraído do Romancero gitano) e a anárquica Asas, que mistura o frevo de bloco dos irmãos Raul Moraes com as plugadas guitarras à la Mutantes. Clássico absoluto!
Romance da Lua Lua – Flaviola e o Bando do Sol
Na época de seu lançamento, o álbum não aconteceu. Ficou limitado ao restrito circuito alternativo de Pernambuco. Na virada do milênio, foi redescoberto e ganhou novas fornadas, com a reedição do vinil pelo selo inglês Mr. Bongo, responsável por desenterrar várias pérolas do psiciodelismo brazuca. Em 2011, a gravadora lançou a coletânea Psychedelic Pernambuco, incluindo duas faixas de Flaviola e o Bando do Sol (O Tempo e Desespero).
Outra lenda ronda a obra do compositor pernambucano: a de que a capa de seu álbum foi copiada no disco Opel, do fundador do Pink Floyd, Syd Barret. Os dois álbuns foram lançados num intervalo de 14 anos (sendo o do brasileiro anterior) e as fotos das capas são incrivelmente parecidas.