NUNO MINDELIS
Volto a falar dos feras, os de verdade, os “real thing” , como são chamados carinhosamente nos EUA. Os negros americanos do blues, os meus heróis, os que me subjugaram menino, com a sua arte mágica e contundente, a sua feitiçaria implacável.
Redenção, ainda imberbe, com Muddy Waters, com John Lee Hooker, com Elmore James, com Willie Dixon, com Howling Wolf , com Jimmy Reed, com Big Bill Broonzy, com… poderia desfilar nomes por algum tempo.
Feitiçaria ? Sim, ‘candomble’ é uma palavra usada na Louisiana e engloba, entre outras, a designação para a levada inventada por Bo Diddley, bluesman controverso, considerado um dos inventores do Rock and Roll.
Quem me conhece sabe que sou arredio ao blues mais contemporâneo. Não porque soe pior, pelo contrário, mas por parecer versão repisada, fórmula desgastada, exausta, texto estereotipado, essas coisas. E, nesse sentido, Lurrie Bell também não trabalhou na plantação de algodão, como os citados lá em cima. Mas o pai dele, Carey Bell, se não trabalhou, nasceu do lado, em Macon, Mississipi.
Foi da linhagem da diáspora: aqueles bluesmen que saíam do Mississipi para Chicago, a rota clássica do blues, da encruzilhada, do pacto com o diabo, em direção aos salões maiores, ruidosos, iluminados e festivos de Chicago. Espaços que obrigaram, quase naturalmente, à eletrificação da guitarra e ao martelar do piano como forma de se fazerem ouvir, em contraste com os botecos minúsculos do Delta, nos quais os decibéis do violão e da gaita faziam o serviço sem problemas.
Lurrie nasceu em 1958, mas não parece ter sido minimamente afetado por toda a história do rock and roll, do soul, do country elétrico, do free Jazz, da invasão britânica, do Woodstock (quase no seu quintal), de absolutamente nada. Soa exatamente como as coisas soavam antes mesmo de ter nascido, nos botecos de Chicago onde Muddy eletrificou a guitarra. E é nesse ponto que uma luz verde se acende. Não imita o que aconteceu antes, de fato parece ter sido congelado no século passado e descongelado décadas depois. A criogenia preservou o seu blues e os seus hábitos, como quando se encontra um fóssil de peixe de milhares de anos no gelo e se pode comê-lo. Sushi milenar.
Até o timbre da guitarra, sem uso de pedal, claramente desencanado, e o flerte (quase permanente) com a desafinação dos tempos pré-afinador (pior até, eu diria) reforçam essa percepção. Basta ouvir I Got So Weary ou This Worrisome Feeling in My Heart. É o anti timbre, a anti afinação. Para quem tem TOC é um suplício. Ele parece estar se lixando, nem deve saber que existem essas tecnologias. E? O resultado é ‘real thing’.
Comecou a tocar aos seis anos de idade e foi influenciado , entre outros, por Eddie Taylor (ahh! Meu herói!) Essa influência é clara. Basta ouvir One Eyed Woman. “Titio” Eddie inventou uma forma de tocar guitarra ‘Chicago Blues” cuja abordagem é paradigmática. E de uma elegância invulgar. Não o ouça se não quiser sucumbir à sua influência, é como droga pesada.
Can’t Shake This Feeling, premiado ‘Melhor album de blues tradicional” pelo Blues Music Awards, poderia ter sido editado na Chess Records na época de Muddy, Dixon, Howling Wolf, Little Walter, Etta James. Não faria diferença, seja na forma ou na legitimidade. Embora eu não tenha medo de afirmar que perderia em originalidade, pelo menos, no que se refere a vocal.
Lurrie tem bom gosto e técnica de guitarra apurada, embora goste de mostrá-la só de vez em quando. Como no solo da faixa título (onde há pitadas fortes de Eddie Taylor) ou em Sinner’s Prayer, um slow blues (no qual, pasmem, faz uma concessão à ‘modernidade” autorizando um Rhodes em vez de um piano acústico tradicional). Esse deve ser o máximo de liberalidade que faz.
A voz é preocupante, traduz algo como dois maços de cigarro por dia e vários litros de Jack Daniels. Apesar de nascer no meio de Eddie Clearwater , Eddie Taylor e Big Walter Horton, há também indícios escancarados de Albert King na sua linguagem de guitarra. Também pudera ! Esse é outro que parece entorpecente pesado, ouça-o e programe logo o rehab ou sucumba. De novo, o solo de Sinner’s Prayer pode demonstrar esse ponto.
Voltando a criogenia, se algum sujeito congelado nos anos 30 fosse descongelado agora e perguntasse o que é o blues, bastaria entregar-lhe esse disco lançado em 2016. Confiram, pessoas antenadas, e depois me digam o que acharam .
Hasta pronto !