O rap e o resgate da identidade negra

Tem quem diga que vivemos em tempos de retrocesso, mas muitos artistas do rap nacional vão na contramão, com uma palavra que pode parecer até ser sinônimo: resgate! E a identidade é o alvo! Thiago Elñino é a prova disso. Peculiar, intenso e verdadeiro. É assim que descrevo seu jeito de fazer rap, preocupado em resgatar a ancestralidade. Em Diáspora (2016)  ele aconselha para “buscar sua raiz”. No final, canta “Irmão, me diz qual é o receio, de saber de onde tu veio, de saber quem você é. Irmão, fizeram tu achar feio, você vir de onde tu veio, destruíram sua fé”. O recente álbum dele, Pedras, Flechas, Lanças, Espadas & Espelhos, também tem essa vibe de trazer o passado a tona.   Lembro da vez que fui gravar para o meu Trabalho de Conclusão de Curso e a entrevistada disse que só se descobriu negra com quase 40 anos. Em uma época da vida, ela vivia um namoro no qual a mãe do cara não gostava dela por ser negra. Ela me disse que se naquela época  tivesse a consciência que tem hoje daria até turbante de presente para a sogra, só ‘para causar’. Falou isso com super alto astral. Ter consciência de si é sobre autoestima também. O rap retrata a vida Escuto a música Um dia de Injúria, do Amiri. Ele conta a história de um garoto que passou por racismo em toda sua vida, principalmente na infância e isso fez com que se sentisse feio. Que pessoa negra nunca se sentiu constrangida quando as crianças resolviam fazer uma lista de “pessoas mais bonitas da classe”.  Recentemente, um professor de Santos foi gravado chamando uma aluna preta de feia e outras demais expressões fruto do racismo. A letra de Amiri representa a vivência de muitos. Na adolescência, qual pessoa negra não se sentiu sozinha em um final de festa enquanto vários casaizinhos se formavam? Principalmente em um ambiente majoritariamente branca.  Autoestima Aí quando a Drik Barbosa lançou Rosas, eu fiquei abismada no replay. Olha o pique, o nível de autoestima da música. “Sorriso no rosto, isso te incomoda?”. Pois é né! Além de várias referências históricas negras na letra.  A busca pela identidade abre caminho para muitas questões serem trabalhadas. E um dos pontos é que a partir do momento que você se reconhece, se sente diretamente atingido pelos acontecimentos: atravessados pelo racismo de cada dia. Quando vejo alguém como MC Soffia, de 15 anos, e MC Caverinha, de 11, fazendo sucesso tão cedo e tão cientes da identidade deles, com todo apoio que merecem, fico com aquela pontada de esperança. Preta Rara já canta que “meninas negras não brincam com bonecas pretas”, em Falsa Abolição (2015). Um ano depois, MC Soffia  cantava “Devolva minhas bonecas. Quero brincar com elas. Minhas bonecas pretas. O que fizeram com elas?” Hoje, a jovem cantora anda muito bem com sua identidade, pelas letras da música. Hoje, ela canta que o “Continente mais rico é a África”, em É o Hype. A música integra o próximo EP intitulado Soffisticada.  O rap se insere nesse momento de resgate da ancestralidade como caminho para uma sociedade e indivíduos mais conscientes, principalmente em relação ao autoconhecimento. Aquela sensação se saber que você não é “feio”. Pois repito, como disse Thiago Elñino “fizeram tu achar feio, você vir de onde tu veio”. Um movimento em cadeia emerge quando olhamos para a identidade, e antes disso, para trás. 

Caoz lança mixtape +Band

Representando a cena da Baixada Santista, a crew do Caoz lançou sua primeira mixtape + band, no último dia 31. A coletânea conta com dez faixas, entre trampos solos e dois colaborativos dos membros, sendo Pra Todo Mundo Ver, do Tavares Mc e Gabitopia, e Minas Assassinas, da Smile MC e Meduza Braba. Faixas solos A convidada Maya Pires abre o trampo com a poesia MAR (va) GINAL. Sem censura alguma e sem medo de mandar um papo reto, as músicas oscilam entre os movimentos das mulheres e LGBT+. Apaixonada Por Outra, da Gabitopia, já começa com a batida do funk. Tavares MC troca uma ideia com Amor Cannabis ou Ódio. Call Me Later, da Luna, vem dar aquela esquentada no clima. Só ouvindo pra entender. Desengasgue, de Vinih Amorim, fala sobre a vivência e manda recado avisando que “vai ter bixa no topo com o mic na mão”. A intitulada Tô Na Capa, da 777 Criminosa, é onde se insere a frase “+ band da Baixada”. Meduza Gang, da Meduza Braba, registra que sua banca “100% feminista não passa pano pra machista”. O Cravo e a Rosa, de Smile, faz alusão à história bem conhecida, mas a versão atualizada representa o avanço quanto a tolerância entre relacionamentos abusivos. Ou seja, não tem, “pois hoje quem bate em mina, o Caoz manda buscar”. E é assim que a mixtape se encerra.  Dá um confere

Mães de Maio encontram boas lembranças no Rap e no Funk

Coordenadora do movimento fala sobre aparecimento no clipe de Rashid e Emicida, e relembra nomes de MC´s da Baixada Santista que eram admirados pelas vítimas do massacre de 2006  O clipe Todo Dia, do rapper Rashid, lançado em setembro, é uma música-manifesto sobre “lutar diariamente”. Ele traz uma mensagem de resistir às injustiças do Estado e da “filosofia branca que destrói”. Um dos trechos da música revela um dado assustador.  “Tem noção que a cada 23 minutos, uma mãe preta fica de luto. Vidas que vão sem clemência ou tributo. Violência é o Produto Interno Bruto”? E essa frase resume parte da vida das integrantes do movimento Mães de Maio na Baixada Santista. Por isso, elas foram convidadas para participar do clipe.  Luta por justiça As integrantes do movimento da Baixada Santista estão há 13 anos na busca por  justiça pelos assassinatos de jovens que foram mortos por agentes do Estado em cidades da região em 2006. Naquele ano, as vítimas foram alvo de uma rixa entre facções e policiais. Elas não tinham envolvimento com a situação, mas acabaram morrendo inocentemente. “A produção Memória Viva entrou em contato solicitando autorização. Para nós, foi muito gratificante porque exigimos que essa luta seja de responsabilidade não só das mães, mas da sociedade. A gente sabe que muitos artistas saem da periferia, ganham status, mas precisamos que eles também façam o grito da periferia sair da garganta. Quando eu escuto o material que eles produziram me sinto contemplada. Eles ajudam muito a ecoar o grito das Mães de Maio”. Coordenadora do grupo Mães de Maio da Baixada Santista, Débora Silva, de 60 anos, sobre as imagens do clipe Todo Dia. Ela ainda diz que a visibilidade é um fator importante proporcionado pelos artistas que somam com o movimento. Também considera que eles ajudam a propagar a mensagem do grupo. “Nós do Mães de Maio também aparecemos no clipe Chapa, do Emicida. E a gente mostra o trabalho dentro das universidades, quando estamos fazendo debates”, detalha. Ex-Facção Central também cantou a luta As Mães de Maio também inspiraram a música A Fantástica Fábrica de Cadáver, do Eduardo, ex-integrante do Facção Central. Ele foi convidado para um evento do movimento em parceria com a Família 013, e cantou no lixão do Sambaiatuba, em São Vicente há cerca de cinco anos. Na ocasião, o artista ganhou um dos livros das Mães de Maio. Tempos depois, elas ficaram sabendo que a leitura do escrito resultou na música. Neste aspecto, Débora afirma que “a arte ajuda a ampliar o grito do movimento”. Música é memória viva dos jovens assassinados nos Crimes de Maio O convite para participar de produções de artistas também desencadeia boas memórias em Débora e nas integrantes do movimento, porque elas conseguem recordar além dos momentos de luto. “Quando eu vejo esses jovens artistas nos chamando para fazer parte do cenário musical, eu lembro do meu filho. Ele transformava a letra da música em nota musical. Ele era muito inteligente, tocava piano, violão… Então para mim a música é tudo”, relembra.  O filho de Débora não é o único a ser relembrado pelas produções musicais. A maioria das vítimas dos Crimes de Maio escutavam vários MCs, principalmente no ritmo funk, pois segundo Débora “nas letras das músicas eles colocavam a vivência da comunidade”.  Ela conta que uma das integrantes do movimento, que morreu no ano passado, era apaixonada pelas músicas dos artistas, porque sua filha era funkeira. “Ela até se desligava das atividades para ouvir música. A gente tinha que chamar sua atenção toda hora”, relata com empolgação.    MCs mortos em Santos Ela lembra da memória de MC Duda do Marapé, MC Primo, MC Careca e MC Felipe Boladão, que também foram mortos a tiros, nas mesmas condições das vítimas de 2006, segundo aponta as pesquisas dos Crimes de Maio.   “Foi muito simbólico, muito bonito. A música está dentro do movimento das mães. O rap é disciplina e a fusão do rap e do funk é unir o útil ao agradável. Jamais esquecemos dos MCs que gritavam pela periferia. Eles foram calados quando mortos, mas sempre louvamos esses meninos. Para nós, suas músicas são hino nacional das desigualdades desse país”. Débora afirma que um dos episódios mais marcantes em assassinatos de MCs no Brasil, foi a morte do MC Daleste, em 2013. “Depois disso se instaurou a cultura do medo nos MCs, e muitos começaram a cantar ostentação. E ficou mais aceitável, porque eles pararam de atacar o Estado, de falar da vivência da favela. A gente não aceitou isso, porque não aceitamos o consumismo, isso não vem da comunidade. Mas sempre relembramos a memória dos nossos MCs nos eventos. A molecada ainda canta as músicas deles”, afirma.