A despedida dos palcos de Milton Nascimento

A despedida dos palcos de Milton Nascimento

A cortina reabre e, na penumbra do palco, Wagner Tiso dedilha algumas notas soltas no piano. Aos poucos, a memória afetiva remonta Coração de Estudante – canção necessária nesses sombrios tempos atuais de riscos à democracia ainda frágil sob os Trópicos. Entre compassos, harmonia e troca cúmplice de olhares, o resumo e a celebração de quase sete décadas de amizade. A penúltima música interpretada por Milton Nascimento no caminho que vai dar ao sol demonstra o tamanho da obra de Bituca, e o quanto certas canções são eternas. Elas nos levam às lágrimas nos acordes iniciais.

A presença de Tiso no tradicional bis e sob o coro de quase 60 mil vozes no lotado Mineirão – e não haveria composições mais emblemáticas para encerrar a Última Sessão de Música – traduz a gênese do Clube da Esquina. O gênio de Três Pontas (MG) é responsável por descortinar para o mundo aquilo que Caetano Veloso apelidou de Mil Tons. A amizade e parceria dos dois são originárias na primeira infância. Tiso tinha 9 anos quando conheceu uma figura que se tornou não só um amigo para toda a vida, como também seu parceiro musical: Milton Nascimento, carioca convertido em mineiro de alma e coração.

Foi com Tiso que o jovem Milton aprendeu (literalmente, do dia para a noite) a dominar um baixo acústico e a vencer a timidez (que o acompanha até hoje) para soltar aquilo que Elis Regina (1945-1982) cunhou de a Voz de Deus. E o pianista estava presente na primeira gravação em estúdio, nos corredores do Festival da Canção em que Travessia se tornou um clássico instantâneo (e eterno), nos primeiros discos. Estava na guinada radical na carreira e encabeçou o fantástico Som Imaginário – lendária e quase irreal banda a acompanhar a fase áurea do carioca mais mineiro de todos.

Crédito: Glaucimara Castro / BS Fotografias / Instagram Milton Nascimento

A amizade, sem dúvida, é o fio condutor da apoteótica apresentação de despedida – em minha modesta e enviesada opinião – do maior pilar da música brasileira. A começar pelo texto de abertura: não deixou ninguém pelo caminho. Citou amigos que o destino quis que partissem cedo demais. E como em Milagre dos Peixe ao vivo (1974), dedicou a apresentação a Agostinho dos Santos (1932-1973), cantor fundamental para consolidar a Bossa Nova nos quatro cantos do mundo e que inscreveu, de forma escondida, três composições de Milton no Festival Internacional da Canção de 1967 – que coroou Travessia em 2º lugar e Morro Velho, em 10º.

Ofereceu, com lágrimas nos olhos e voz embargada, a apresentação à Gal Costa (1945-2022), que nos deixou com os olhos úmidos nesses dias em que a esperança parecia estar a um passo. Celebrou Elis com uma sequência inicial de canções que ganharam vidas próprias (e, porque não, coautoria) na voz da pimenta gaúcha. Ponta de Areia, Morro Velho e Canção do Sal ditaram a catarse da apresentação de quase duas horas e meia, nas quais desfilaram composições atemporais.

Numa sequência (quase) cronológica, Milton recordou clássicos (conhecidos ou mais obscuros), em especial os álbuns lançados pela EMI-Odeon, na década de 1970. A voz pode até não ser a mesma estampadas nos sulcos dos LPs – hiper valorizados nos sebos espalhados pelo mundo –, mas a emoção a conectar uma legião de fãs de todas as faixas etárias estava impressa em cada gesto, demonstração de afeito – mútua entre artista e público – e na fala abafada pela emoção. Era Milton em estado bruto. Foi lindo e inesquecível!

Ponto de altíssima rotação do derradeiro show, a reunião dos pilares do Clube da Esquina: Toninho Horta, Beto Guedes e Lô Borges deram novo significado ao álbum que completou meio século (e continua tão atual).

“Apenas viver na mesma linha temporal que Milton Nascimento já é motivo de alegria”, resumiu Samuel Rosa antes de O Trem Azul. Já a belíssima Fazenda – presente no álbum Geraes (1976) teve o vocal dividido por seu autor, (o sensacional) Nelson Angelo. Clássicos!

Crédito: Glaucimara Castro / BS Fotografias / Instagram Milton Nascimento

Por ser no Mineirão, não poderia faltar Tema de Tostão, composição que traz o DNA das vocalizações de Milton, e que fez parte da trilha sonora do eterno craque do Cruzeiro.

Ainda entre as “desconhecidas”, a instrumental A Última Sessão de Música, que nomeou a derradeira turnê de Milton, representou o mais simbólico ato de resistência dos anos de Chumbo, o (espetacular) Milagre dos Peixes – álbum mutilado pela censura. Milton, assim como Gal, Bethânia e Vandré, foi um dos poucos músicos que permaneceram por aqui quando a barra pesou nos anos de “Ame ou Deixe-o”. E, claro, a barra pesou. Cinco das oito faixas do álbum tiveram as letras mutiladas ou completamente riscadas.

No momento de transição do show, Milton interpretou canções recolhidas da cultura popular. Ponto alto de Folia de Reis, a lindíssima Cálix Bento se transformou em Peixinhos no mar, que culminou na mais bela poesia popular brasileira: Cuitelinho – não haveria Drummond, Meireles, Pessoa ou Leminski capazes de esculpir “A tua saudade corta \ Como aço de navaia \ O coração fica aflito \ Bate uma, a outra faia”. Gênio!

As lágrimas que habitavam minhas retinas – e que eu nem lutava mais para segurar – vieram com força em Bola de Meia, Bola de Gude. Todos temos canções especiais, mas essa é daquelas que me fazem renascer, como Fênix, nos momentos de maré baixa. Afinal, “toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão”. Poesia, aliás, que fervilha nos parceiros Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos.

Crédito: Glaucimara Castro / BS Fotografias / Instagram Milton Nascimento

E não haveria faixa melhor para encerrar a história de 60 anos nos palcos da vida, entre os 80 de existência desse ser presente na trilha sonora global. A Travessia que Milton cruzou para chegar até aqui foi costurada de momentos em que muitos jogariam a toalha. Esse limiar sempre esteve a um fio, mas os amigos que o mestre cultivou pelo caminho o mantiveram em sintonia para que ele cumprisse a missão de esperançar corações que sempre há de acreditar nas coisas bonitas que não deixarão de existir: “amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor”.

Sem forças para agradecer as almas a testemunhar esse momento singular de nossa Cultura, Milton foi amparado num abraço sincero e carinhoso de Márcio Borges, quem o incentivou até mesmo quando faltou luz (e é belíssima essa passagem no livro Os sonhos não envelhecem, de Márcio Borges) ou ausentava a chama de cumprir a sina de ter a roupa encharcada e a alma repleta de chão.

Sem Milton Nascimento nos palcos, abre-se um vazio. Dói entender o definitivo adeus, mas sou grato por ainda na primeira infância um álbum duplo – e hoje condecorado como o melhor da MPB – ter se tornado o passado no meu presente e meu guia nos momentos bons da vida. Bituca é essa genialidade imensa que sai dos palcos para se tornar aquilo que sempre foi: eterno.