Unindo influências da MPB, do jongo, do funk, da bossa nova e da cumbia, o álbum de estreia da cantora carioca Rô Araujo, Afruturo, é um destaque no cenário musical. O disco aborda temas importantes como liberdade de expressão, ancestralidade e empoderamento feminino.
Com 12 faixas que narram histórias marcantes, o álbum conta com as participações especiais das artistas Ananda Jacques, Aiane e Ju Santana, agregando vivências e perspectivas de uma mulher preta suburbana, nascida em Nova Iguaçu.
A faixa de abertura, Nesse Som, ganha destaque com um clipe gravado na cidade natal da cantora. O vídeo inclui uma transcrição inédita em Libras e a participação de artistas independentes da Baixada Fluminense, reforçando o compromisso de Rô com a inclusão e a valorização de talentos locais.
Em entrevista ao Blog n’ Roll, Rô Araujo falou sobre o processo de criação do álbum, suas inspirações pessoais, os desafios de ser mulher em uma sociedade desigual e a mensagem por trás do trabalho.
Primeiro, queria que você falasse sobre o seu álbum como conceito, o nome Afruturo é bastante simbólico. Qual é o significado por trás dele e como ele reflete as mensagens que você quer transmitir?
Esse álbum, na verdade, foi surgindo muito aos poucos. Cheguei a esse conceito quando comecei a juntar as peças do que queria transmitir através das músicas. Acho que é uma visão afrofuturista, tenho trazido esses conceitos, mas no sentido de que a gente poder se permitir projetar um futuro. Claro, que sem rejeitar o nosso passado, entendendo a nossa história. Acho que quando a gente está bem enraizado conseguimos nos posicionar e enxergar novas possibilidades. Então… por isso Afruturo. Que acho que se comunica bem com as músicas que já estava compondo. E aí depois fiz outras que acredito que complementam bem o álbum.
Você já tinha mencionado que a ideia de fazer o álbum surgiu de um momento muito difícil da sua vida. Queria saber o que aconteceu, mas, acima de tudo, saber como isso impactou na sua vida pessoal e profissional.
Há quatro meses, mais ou menos, tive uma gravidez ectópica, uma gravidez fora do útero. Então, foi um momento de muitas reflexões. Claro que foi um momento também pesado emocionalmente, mas acho que foi uma virada de chave para perceber outras coisas. Porque corri risco de vida também, por causa da gravidez. Acho que quando a gente está de frente para um momento tão difícil, começamos a nos questionar, né? Se eu morresse hoje, eu já fiz tudo o que queria? Me deu um estalo, assim, também, de pensar o que quero criar, o que quero trazer ao mundo, para além de uma gravidez e um bebê.
Então, pensei, ‘nossa, quero criar músicas, quero colocar no mundo, dar luz às minhas ideias também’. E acho que foi o momento-chave, assim, de pensar em sair desse lugar de ficar o tempo inteiro pensando que sou uma artista independente e que não tenho dinheiro. Vou fazer do jeito que dá para fazer. E coloquei as ideias para frente, então, foi isso que aconteceu, que me deu uma virada de chave. Na verdade, a gente só tem uma chance na vida. Quando a gente leva um susto, acho que as coisas ficam mais claras. É realmente importante, vou levar à frente apesar dos medos, das inseguranças.
Já tocando nesse assunto, duas músicas que me chamaram mais atenção foram Todo Mundo Vai Julgar e Egocêntrica, principalmente por abordarem temas como autocuidado e amor próprio. Como você define esses conceitos na sua vida?
Na minha vida? É interessante você falar dessas músicas porque estava conversando com a minha mãe sobre elas. Ela disse: “Egocêntrica? Eu poderia ter feito essa música”. Acho que comecei a observar muito. Foi uma música que pensei bastante antes, no conceito, na ideia, no tema. E pensei: “poxa, eu queria tanto uma música que fosse como um mantra para me lembrar de me cuidar, sabe?”. Observo muito isso nas mulheres da minha família e nas minhas amigas, essa queixa e essa sobrecarga, sabe? De estarem sempre de olho nas necessidades dos outros, cuidando dos outros, mas pouco de si mesmas. Então acho que essa música me lembra de me cuidar, de me centrar em mim mesma, sem me sentir culpada por isso.
Todo Mundo Vai Julgar reflete um incômodo que tenho. Não é porque escrevi essa música que estou isenta de preocupações estéticas. Acho que ser mulher e viver nesse momento é muito sobre isso: lidar com essas questões. Mas também é sobre o incômodo com as redes sociais, sabe? O fato de todo mundo estar o tempo inteiro usando filtro e o medo de se expor naturalmente. A comparação excessiva, os retoques, as cirurgias… E o quanto tudo isso demanda tempo, energia e dinheiro. Às vezes, vejo amigas jovens, de vinte e poucos anos, preocupadas em gastar dinheiro com essas coisas. Então penso: por quê? Como isso suga a nossa energia, assim como a demanda de cuidar das pessoas. Tudo isso me faz refletir muito. Queria expressar de alguma maneira essas minhas preocupações, questionamentos e incômodos. É isso.
Bom, você fez algo totalmente voltado tanto para as mulheres negras quanto para as mulheres em geral. A parceria com outras mulheres no disco é algo muito marcante. Como foi construir esse “porto seguro” com elas?
Com essas parceiras, especialmente, foi muito fácil e fluido, apesar de elas estarem envolvidas em outros projetos e, às vezes, não termos tempo para nos encontrar. A maior dificuldade foi mesmo parar e fazer acontecer, sabe? Acho que estamos em um ritmo de muitas demandas e pouco tempo para criar. Mas, quando decidimos tentar e criar, foi muito interessante.
Com a Ju Santana, foi super natural. Ela é minha amiga há muitos anos, e há muito tempo queríamos compor juntas. A Yane conheci através do programa Mares, que foi uma residência artística só para mulheres, promovida pelo Movimento das Mulheres Sambistas, e desde então temos composto juntas.
A Nanda Jacques conheci em um sarau só de mulheres, e essa foi a nossa primeira composição, que já entrou no disco. Acho muito importante que a gente se una, sabe? Mulheres artistas se apoiando, deixando de lado essa ideia de competição, que infelizmente ainda existe bastante, não só entre mulheres, mas de forma geral. Acho essencial nos unirmos para dar voz ao que está dentro de nós.
Voltando para as músicas, você criou um ritmo muito interessante, misturou gêneros como bossa nova, cumbia, funk e maracatu. Como foi transformar tudo isso em um álbum conciso e tão único?
Ai, obrigada pelo “conciso e único”. Fiquei preocupada, porque, pensando no mercado, me perguntava: “onde vou me encaixar, né? Um álbum que tem tantos ritmos… E aí, é o quê? MPB?”. Foi uma preocupação inicial, mas depois decidi: “Vou simplesmente criar”. E o Rafael Brito, que é o produtor musical do disco, um cara incrível, captou muito bem todas as ideias e ainda trouxe contribuições incríveis.
A primeira música do álbum, Nesse Som, que é um jongo misturado com funk, surgiu de uma ideia que eu tinha de juntar essas duas linguagens. Porque, às vezes, parece que são muito diferentes, muito distantes. Mas, na verdade, elas vêm de uma mesma raiz. Então quis fazer essa brincadeira de misturar, na mesma música, vários ritmos. Acho que está dando certo, parece que ficou legal!
Como surgiu a ideia de incluir a linguagem de Libras no vídeo de Nesse Som e o que isso representa para você?
Estava pensando em chamar pessoas que, talvez, não tenham espaço. Gravei esse clipe em Nova Iguaçu, onde nasci, e quis trazer artistas daqui da Baixada, que, às vezes, não têm tanta voz. Artistas que dançam break, passinho, algo que, muitas vezes, fica muito concentrado naquela coisa do Centro do Rio de Janeiro, da Lapa, da Zona Sul. Então, acho que fez parte dessa ideia maior de descentralização do poder, além de dar voz e espaço para pessoas com necessidades múltiplas.
Foi a Vanessa, do Incluir pela Arte, quem fez esse trabalho lindo de acessibilidade para a gente, e foi muito bacana poder trazer isso para o projeto.
Você teve retornos positivos de pessoas surdas, mudas, que precisam da Libras para se comunicar?
Nossa, sim. É muito bacana receber um retorno assim. É gratificante, dá um sentimento de “valeu a pena esse esforço”.
Seu álbum traz várias referências de funk, cumbia, mas quais são as suas referências como artista?
As minhas referências são muito diversificadas, mas tenho os meus grandes ídolos, aqueles que vi a vida toda, como Caetano, Gil, Bethânia, Gal e Vanessa da Mata. Mas também escuto funk, adoro a Anitta, a Ludmilla. Acho que tenho uma diversidade musical que vem de dentro da minha família também. Meus pais escutam muita música norte-americana, como Stevie Wonder, Michael Jackson. Talvez isso se reflita no álbum. Por exemplo, tem uma salsa que fiz com a Ju Santana, e ela virou salsa por causa do Stevie Wonder. Senti que a música se encaixava de alguma maneira nesse estilo.
E dá para ver que você traz muita representatividade na sua música, principalmente a ancestralidade da mulher preta. Qual é a importância de trazer essas referências no seu disco?
Acho que poder falar desse lugar já é muito importante, até porque não sou uma mulher negra retinta, sou uma mulher parda e, por muito tempo, me vi num limbo racial, sem entender bem o que vivia. Acredito que é muito importante, desse lugar, poder falar um pouco das minhas vivências e perceber que mulheres com a mesma cor que eu também se identificam e se reconhecem. Isso é muito forte para mim.
Meu primeiro single se chama Mulher Negra, e gravei um clipe com mulheres de várias tonalidades diferentes. Inclusive, minha mãe e minha sobrinha participaram. É importante falar desse lugar também, não só do lugar de ser uma mulher, mas de ser negra e suburbana.
Para finalizar, qual mensagem você gostaria que as pessoas levassem das músicas do álbum?
São algumas mensagens, mas acho que, essencialmente, é resgatar a mulher, lembrar do poder que a gente tem, da criação que a gente tem, apesar de tudo que está em volta, da opressão, do medo, da violência. Apesar de tudo isso que tenta, de certa forma, abafar o nosso poder. É muito difícil, ainda enfrento o machismo no meu dia a dia, de sentar numa roda de samba e me sentir sem voz, sei lá, a voz ainda é muito forte, o machismo, isso causa insegurança. Quando a gente consegue silenciar todas as vozes e olhar para nós mesmas, são momentos tão raros e temos que buscar cada vez mais esses momentos de se ouvir e se conectar com a nossa potência.