ISABELA DOS SANTOS
Faz algum tempo que venho pensando em significados de letras, na construção das rimas e percebi muitas coisas em comum na composição dos caras. A primeira vez foi com a música Convoque seu Buda, do Criolo (2014). Tem uma parte que diz o seguinte “Os caras que cola pra ver se cata mina, ou as minas que cola e atrapalha ativista”. Fiquei meio incomodada, como assim a gente atrapalha ativista? Desde então, é frequente eu desconfiar de alguns trechos aleatórios que envolvem mulheres. Geralmente são em músicas sem relação com o tema, você não está esperando por elas, mas vem e aí a gente engole.
Por exemplo, uma música que estou ouvindo com frequência é Luto do Djonga e Black. A faixa fala sobre empoderamento preto e não passar pano pra racista, um trap com conteúdo, digamos assim. Mas em um momento, o rapper Djonga rima “gata, nós tem palavra, tem postura. Cê deixa esse cara que Deus cuida dele. E não esquece que Deus sou eu”, tipo, como se ele fosse o salvador e pra reforçar que ele é fodão, se dirige a uma mulher, pra superioridade se mostrar mais aflorada. É o que acontece e muito. Utilizar do sujeito feminino para “dar mais peso a letra, causar um impacto maior, digamos assim.
O próprio Choice, de quem sou muito fã, na música Hórus está falando que “vai dar um papo de favela”, sobre deixar os melhores pra trás e tudo mais, e do nada surge um trecho sobre como “ela” olha e admira ele. Do nada, aparece um ritmo mais voltado pro funk com o seguinte trecho:
“Sobe o morro outra de baby look
Pede o zap, o Insta e o Facebook
É uma pena que eu sei do seu truque
Diz que sou incrível e eu me sinto o Hulk
Ela sobe na garupa da Suzuki
Me olha num estilo Brooklyn
Me sinto tipo 1971
Ela me chama de the sex machine”
E aí ele retorna dizendo que deixar os melhores pra trás o fez entender o que é correr de verdade. Vê que não fez muito sentido. A música te prende muito, e parece que ele ganha sua atenção a cada frase. E quando chega no ápice, aquela parte que a gente acha todas as rimas fodas, independente do que vier, porque já entendemos que o artista surpreendeu e vai continuar surpreendendo na faixa, ele fala sobre “ela” e como é exaltado. É como se fosse uma carta na manga. As rimas estão dando certo, o beat está viciante, a pessoa está aceitando qualquer rima que vier, “então enfia uma sobre mina que o público vai captar o quão incrível sou, tanto como rapper, quanto homem”, parece que eles pensam assim.
É como se fosse “um enfeite, um acessório (que sempre funciona) na música”. É um pensamento consciente e por vezes inconsciente também de que “falar de mina sempre dá certo, dá um crédito, deixa eu colocar aqui” e é isso. Por este motivo, as minas acabam fazendo muito RAP sobre machismo e misoginia, porque o hip hop é um espaço para as minorias, mas a nossa sociedade mesmo entre os discriminados tem subcategorias e as minas tão lá. São alvos até em letras mais “leves” e “inocentes” quando o rapper cita uma “gata imaginária”,coloca no meio da música que não tem nada a ver com momentos românticos ou sexuais.
As minas “só sabem falar sobre isso” (algo que leio bastante em comentários e até mesmo de rappers), porque além da sociedade como um todo ser extremamente machista, em quase todas as letras têm citação de MC falando de mina de forma direta ou indiretamente, então é preciso que elas falem sobre isso. Pro público majoritariamente masculino e para os próprios artistas “é chato”, mas aí quando falam de mulheres nas letras deles é “legal”. Porque enquanto eles estão fazendo várias músicas, temos que ficar ouvindo as bobagens e falar sobre pra ver se entendem e refutar, tentar criar um público mais consciente.
E acho que esse uso do “enfeite” se deve muito ao fato de que as mulheres começaram a mostrar que estão na cena realmente, porque eles não tem coragem de colocar todo machismo pra fora, “fica feio”. Mas quando menos se espera, o assunto aparece de uma forma ou de outra.
Há cerca de um mês fui na Batalha da Conselheiro, que acontece toda quarta-feira na Conselheiro Nébias, em Santos, e enquanto não começava encontrei outra garota que estava lá pra assistir, mas como não sabia, perguntei se ela ia batalhar. Não esperava a seguinte resposta: “não, mano, os caras não são muito receptivos”. Tipo, às vezes esqueço deste pequeno grande detalhe.
Lembro que o fato que me chamou atenção na batalha foi presenciar a disputa de uma mina, a Drê Araújo, com um cara e ela tava refutando no freestyle sinistro, tudo o que ele falava sobre mina. Em certo momento ele tocou em uma que estava na plateia e ela fez uma rima com “você tocou e ela nem gostou”, não me lembro bem ao certo, mas arrepiou. E é isso que acontece na cena, os caras falam e as mulheres vão lá tentar explicar a bosta que eles estão falando mesmo que seja óbvio e às vezes não tão óbvio assim.
Essa mesma menina disse que depois que a Drê foi embora ficou complicado para as garotas. E é isso, a gente precisa de representatividade. Mas enquanto estamos tentando dar os primeiros passos, eles já dominam, porque o RAP é reflexo da sociedade, infelizmente.
Outra coisa que estou percebendo é que os rappers estão falando muito de direito para as mulheres e blá blá blá. Mas não entendo porque ao invés de fazer uma música sobre o lugar de fala, não cedem o espaço para isso? Quando o Nocivo Shommon lançou Jack (Estupro é covardia) foi aclamado pela coragem e mensagem. Mas aquilo não me desceu. Parece algo forçado, para ganhar view, o assunto tratado de forma superficial, por um homem. Pelo menos chamasse uma mulher, aquilo seria muito mais real, útil e menos apelativo. Nesses momentos sempre vem na minha cabeça a frase da Issa Paz no CypherBox 5, intitulada Efeito Borboleta que diz “o que esses machos querem falar de algo que nenhum deles vivem?”.
Sabe a música Apshit , da Beyoncè com o Jay Z? Já percebeu que ela é quem detém a maioria das partes, mas no clipe o rapper mesmo nos momentos que não canta, aparece ao lado dela? Isso pra mim representa respeito. Os dois rimam, ela não é alguém que só canta o refrão porque tem uma voz mais “suave”, mais “feminina”. Ela simplesmente fala aquilo que tem que falar, sem que nenhum homem precise falar por ela. É legal que as categorias apoie a luta do outro? Sim! Mas enquanto tiver o “outro” pra falar sobre aquilo que sofre, é bom dar visibilidade. Pensa como mostraria mais cumplicidade se o Shommon apresentasse à seu público essa música junto com mulheres.
Outro ponto que queria tratar é como isso é visto pela mídia. Percebo que em matérias sempre introduzem os trabalhos das mulheres como “representatividade feminina”, a mulher no RAP é o destaque, eu me coloco nisso também. E realmente deve ser. Mas até quando? Deve ser cansativo para várias artistas serem chamadas em TODAS as entrevistas para “falar sobre a mulher na cena, as dificuldades e blá blá blá”, claro que é necessário, mas muitas vezes fica apenas nisso e parece que nunca vai sair disso. Para os homens é “queria falar sobre o próximo álbum, inspirações, conceitos e blá blá blá”.
Tem um episódio da série Nossa Voz Ecoa, da Preta Rara, uma rapper santista que fala sobre a mulher negra e também gordofobia, que ela aborda esse dilema, das pessoas esperarem que ela sempre cante sobre essas coisas, mas que também tem vontade de escrever sobre outras coisas, como indivíduo, ser que ama, que tem sentimentos e etc. Por que as mulheres são sempre aquelas que tem que ter um tema delimitado para fazer RAP? Recomendo a série e aproveito para deixar a música Falsa Abolição.
Bom, quando chegou 8 de março, pensei em por que não fazer uma matéria sobre rapper mulheres e coisa do tipo, mas acabei me criticando também. Falei duas vezes de mulheres dentro do blog, apenas. Nas minhas pautas não constavam quase nenhuma, tive que esperar uma data comemorativa para ver se faria algo sobre. Escutar rappers mulheres só para se sentir mais acolhida quando vítima de machismo não ajuda o movimento.
Só fomenta a ideia de que só falam sobre isso, de resto não servem pra fazer música como homens. Desde que comecei o blog também venho descobrindo diversos artistas, quase todos homens. É algo a ficar de olho aberto.
Enfim, este foi um texto para refletir atitudes a partir do RAP. Aproveito para deixar mais algumas músicas de minas, como Da Onde Eu Vim da santista Mariana Mello.
Recomendo mais duas faixas de rappers que me ajudaram em momentos difíceis. Dory de Oliveira, com a música Delete nos Machistas e MC Souto com Pscicosouto. E tentarei encontrar novas artistas e fazer uma listinha atualizada em uma próxima matéria. É isso!