ADEMIR DEMARCHI
Em fidelidade expressional à época da ditadura, digo que ando, como os militares o faziam, “passando em revista” a tropa de eventos daqueles anos de formação. Não fui para a reserva, não uso Ray-ban, nem quepe, cacoetes imagéticos da época, porém esse é um acerto de contas que nunca cessaremos de fazer, em nome de todos os esqueletos que foram escondidos nos armários.
Já comentei aqui sobre a presença militar no Colégio João XXIII, em Maringá, a começar pelo diretor, um professor-major, assunto de outro dia. Mas lá havia mais homens de caráter fardado e pelo menos um passou pela sala de aula que frequentei. Esse, um bombeiro bombado, o chefe deles, em meio às aulas das fatais morais e cívicas, que eram a joia sobre a coroa do hino nacional que todo dia inaugurava a jornada, éramos obrigados a ouvir ilações sobre a importância das práticas desportivas para a saúde nacional.
Militares e espiões, com o golpe, ganharam esse empreguinho extra e um recheio nos holerites para explicar às novas gerações o nacionalismo verde-e-amarelo que apregoava amar ou deixar o país. As pretensas sapiências sobre a moral e o esporte eram rendadas à base de sorrisinhos amarelos com piadas fúteis, próprias de um tolo desportista que, não distinguindo uma sala de aula da caserna, dizia que não precisava fazer cooper quem tinha um cooper feito… Depois de ouvir uma dessas medíamos o pulha de farda cínica e trocávamos olhares cúmplices nos perguntando atrás do que ele ainda corria tanto, tão perfeito e tão bombado…
As hipóteses se multiplicavam no recreio, como se chamava o intervalo entre períodos naquela época, ia pelos corredores e em especial atrás do colégio, num arvoredo já comido por outras construções, onde iam vários alunos, alunas e um professor fugindo do tumulto interno. Esse lugar, ideal para nosso “déjeuner sur l’herbe”, era ameno e propenso para as conversas e namoricos. Eu o preferia também porque ali não expunha minha miséria, mais mental que aquela que pensava estar em minhas calças de tergal que, fino, logo puía e, sem dinheiro para outra, amargava remendos cerzidos que, somados com os sapatos gastos ganhos de alguém, me envergonhavam perante a competição adolescente e animal de ter que arrumar namorada. Era dura a vida na savana…
O lugar, porém, era propício. Tanto que era para lá que ia um conhecido professor de inglês com quem aprendíamos essa língua de forma lúdica, ouvindo música e traduzindo as letras como as dos (sic) The Pholhas, Morris Albert (que nasceu em um 7 de setembro, já com o DNA da trilha sonora da ditadura) e outros sucessos da época. Esse professor era muito inteligente e perspicaz e com uma particularidade física que o distinguia: era corcunda, tinha 1,5 metro de altura, o que talvez motivasse tudo isso e o fato de que era um incansável namorador, sempre jogando isca para três ou quatro alunas encantadas com sua conversa.
https://www.youtube.com/watch?v=6-oHYYaw9jA
Nós, alunos, não víamos com muito bons olhos essa inesperada concorrência em nossa seara. Porém nada podíamos fazer com aquelas seduzidas por sabe-se lá o que de erótico naquela corcunda e que, invariavelmente, assistíamos ir com ele ao final das aulas, ao som de um Feelings (“sentimentos… por toda a vida vou sentir…”) do Morris Albert… E lá ia o professor e as alunas em seu fusca bege levitando e serpenteando em direção ao paraíso antevisto no horizonte, indiferentes àquele mundo de professores majores, bombeiros e bordas verde-oliva…