Poesia e Rock # 21 – Hecatombes, de Patti Smith para Roberto Bolaño

Poesia e Rock # 21 – Hecatombes, de Patti Smith para Roberto Bolaño

ALESSANDRO ATANES

I
Patti Smith, apresentada no texto anterior como leitora de Roberto Bolaño (1953-2003), escreveu um poema de 100 versos para o escritor chileno: Hecatombe. O tom de homenagem se nota nessa tradução do trecho final, em que poetiza a experiência de deslocamento a que nos levam as grandes leituras:

[…]
A roupa do poeta é a pele
Com bolsos de abismo
Forrado em verso iâmbico
Sua faca é um brinquedo
Espiralando o universo
Marcando um céu curvo
Uma trilogia de números
Selando um crânio com arame
Seu torso ossudo ele expande
Mergulha no lago cheio de vida
Desatrelando para todo o sempre
Uma centena de guirlandas laureadas
E teu corpo encantado
Alça tua travessia
Ascende pelo centro
Dança sobre a água
Um tempo lento de dança
Estremecendo a terra
Com tua fúria estática

Patti Smith, 2010.

Leia o poema completo em inglês neste perfil da autora. Há uma edição de 2015 feita por La Oficina del Doctor com ilustrações de Suarez London.

https://www.youtube.com/watch?v=dxvLJMZveAE

II
O verso da “trilogia de números” refere-se claramente à repetição no título do romance póstumo 2666, considerado por ela um clássico escrito em nossos tempos, isto é, uma obra da qual fomos testemunhas.

Antes, porém, deixemos os próprios escritos de Bolaño nos guiarem pelo labirinto de inter-relações entre suas obras. Em Amuleto (1999), narrado em primeira pessoa por Auxilio Lacouture, conhecemos o significado da homenagem quando a protagonista lembra de uma conversa em que seu interlocutor lhe fala sobre o mito de Erígone e da “hecatombe espiritual” de Orestes:

Sabe o que significa uma hecatombe? Eu identificava essa palavra com uma grande guerra nuclear, de modo que preferi não dizer nada. Mas Coffeen insistiu. Um desastre, falei, uma catástrofe. Não, disse Coffeen, uma hecatombe era o sacrifício simultâneo de cem bois. Vem do grego hekatón, que significa cem, e boûs, que significa boi. Embora na Antiguidade estejam registradas algumas hecatombes de quinhentos bois. Pode imaginar?, perguntou. Sim, posso imaginar qualquer coisa, respondi. Cem bois sacrificados, quinhentos bois sacrificados, a fumaça do sangue devia feder à distância. Os participantes enjoavam no meio da tanta morte. Posso imaginar, falei.

(Tradução: Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 2008).

Em seu poema, Patti Smith também faz uma interpretação crítica, por assim dizer, e repete logo no início do poema a metáfora de hecatombe feita por Bolaño para registrar neste romance o assassinato em massa de uma geração de jovens latino-americanos assassinados pelas ditaduras. Lacouture nos fala de um sonho:

Caminhavam para o abismo. Creio que soube disso desde o momento em que os vi. Sombra ou massa de crianças, caminhavam indefectivelmente para o abismo.

Depois de um murmúrio que o ar frio do entardecer no vale levantava em direção às encostas e escarpas, e fiquei estupefata.

Estavam cantando.

Patti Smith os faz ressuscitar:

Tu falaste de uma hecatombe espiritual
O sacrifício de uma centena de bois
Oferecido ao Oráculo
O deus da verdade
Poesia e música
Tu falaste de uma canção
A cruzada das crianças
Morte e a montanha
Helicoidalmente atada
Agora nós os sem-valor
Reveladores não solicitados
Viramos todas as mesas
A grana é nossa
E falamos desta
Infiltração
Canonização
Apocalíptica celebração
[…]

Vale ressaltar também uma homenagem implícita que é a forma do poema Hecatombe, próxima aos versos do próprio Bolãno no poema Los Neochilenos, como vimos em Uma turnê entre Santiago e Lima na poesia de Roberto Bolaño. A citação à cruzada das crianças pode ser considerada uma referência também ao escritor francês Marcel Schowb (1867-1905), um dos nomes mais citados por Bolaño em seu poema Un paseo por la literatura, em que reúne relatos de sonhos (de novo, os sonhos) com outros autores. Schowb é o autor de A cruzada das crianças (1896), em que transforma em ficção um episódio contado em crônicas do início do século XIII em que grupos de crianças da Alemanha e França se uniram em uma jornada à Jerusalém para participar das cruzadas.

III
Em 2666 (2004), Bolaño expande o significado de hecatombe para a América Latina. Ao invés da oferenda aos deuses como na antiguidade, a carne é servida no palco das relações de comércio para as quais os países periféricos contribuem com matéria-prima. Na primeira parte do romance, a dos críticos, na qual dois dos protagonistas, em busca de pistas sobre um escritor, conhecem uma alemã, viúva do editor do autor que buscam. É a senhora Bubis, amante das artes e das viagens:

… inclusive em uma de suas viagens, um cruzeiro inesquecível, havia chegado a Buenos Aires, em 1927 ou 1928, quando esta cidade era um empório da carne e os navios frigoríficos saíam do porto carregados de carne, um espetáculo digno de ser contemplado, centenas de navios que chegavam vazios e que saíam carregados com toneladas de carne destinadas a todo o mundo, e quando ela, a senhora, aparecia no convés, à noite, por exemplo, cochilando ou enjoada ou dolorida, bastava se apoiar na grade e deixar que os olhos se acostumassem e então a visão do porto a fazia tremer e levava embora de uma só vez os restos do sono ou os restos do enjoo ou os restos da dor, só havia espaço no sistema nervoso para se render incondicionalmente àquela imagem, o desfile de imigrantes que como formigas subiam aos porões dos navios a carne de milhares de vacas mortas, os movimentos dos palets carregados com a carne de milhares de novilhos sacrificados, e a cor vaporosa que ia tingindo cada canto do porto, desde que amanhecia até o anoitecer e inclusive durante os turnos da noite, uma cor vermelha de filé mal passado, de chuleta, de bife, de costela apenas passada na grelha, que horror, menos mal que a senhora, que então não era viúva, só viveu isso durante a primeira noite, depois desembarcaram e se acomodaram em um dos hotéis mais caros de Buenos Aires…

Toda a primeira parte do romance é dedicada a um quarteto de estudiosos europeus que buscam informações sobre um escritor alemão recluso, de nome que mais parece um pseudônimo, Benno Von Archimboldi. Em certa altura, três deles acabam em Santa Teresa (cidade que Patti Smith também cita no poema), no México, no meio do deserto junto à fronteira com os Estados Unidos, onde foram instaladas dezenas de montadoras dos mais diversos ramos da indústria, onde buscam emprego milhares de mulheres jovens e pobres de todo o país.

Ao invés de Archimboldi, descobrem que essas mulheres são assassinadas em escala industrial. São raptadas em grandes carros negros, violentadas, sufocadas e largadas na beira da estrada ou em lixões. A dimensão do feminicídio (baseado em episódios reais que ocorreram em Ciudad Juárez com o assassinato de centenas de mulheres nos anos 90), se dá na parte dos assassinatos, em que acompanhamos a polícia machista mexicana encontrando os corpos e breves relatos do que seriam as vidas daquelas mulheres. A aventura intelectual de pós-doutores europeus (um espanhol, um francês, uma inglesa e um italiano) transforma-se em encontro com o horror no formato latino-americano, nossa própria forma de hecatombe.