ALESSANDRO ATANES
Vi uma dúzia de vezes Rattle and Hum, filme de 1988 que acompanha a turnê norte-americana de lançamento de The Joshua Tree, o aclamado disco do U2 que chega aos 30 anos neste 2017. O U2 foi a minha primeira banda minha, se for permitida a repetição, pois já havia herdado Beatles e Pink Floyd da estante de minha mãe. Aquelas cenas ao vivo da turnê do álbum War (ainda choro com 40), Bad (1985) e depois aquela lindeza do lado B do Joshua Tree (nada contra os hits do outro lado).
Nada de nostalgias, pois junto com o adolescente roqueiro cresceu também o gosto pelos livros. Hoje volto ao filme (que ainda é uma delícia, tenho o DVD e revi há pouco tempo) com o olhar de minhas leituras sobre como os portos são tematizados em textos poéticos e ficcionais.
Em um texto de título Cinema: Os portos da aventura e o isolamento dos bairros portuários, de 2013, trato de relacionar como o espaço do porto e do cais é retratado em filmes como Sindicato dos Ladrões (On the waterfront, 1954, título original que significa Sobre o Cais), Os Suspeitos (1995), Divisão de Homicídios (2003), King Kong (2005) ou Salva-me Quem Puder (Jumping Jack Flash, 1986, olha o rock aí de novo). A lista é longa, pois basta qualquer filme precisar de um ambiente de conflito, perigo ou suspense que o roteiro logo é levado para uma área portuária, lembro agora do laboratório do Doutor Octopus no segundo Homem-Aranha.
Outra forma da representação dos portos nas histórias de ficção consiste em mostrá-los como locais isolados do resto da cidade, com características próprias que fazem as áreas e bairros portuários mais de qualquer lugar do mundo mais parecidos entre si do que com o resto das cidades a que pertencem. Poderíamos citar como exemplos o Querô de Plínio Marcos e Marnie, a ladra do filme de Alfred Hitchcok de 1964, personagens de uma infância de privações em torno do porto.
É aí que voltamos ao Rattle and Hum. Neste registro dirigido por Phil Joanou da grandiloquente turnê da banda chegando ao seu auge no país que criou o rock’n’roll, a abertura mostra a que veio com a pancada da cover de Helter Skelter dos Beatles ao vivo em um ginásio nos Estados Unidos. Após os aplausos, começamos a ouvir as notas de Van Diemen’s Land, cantada pelo guitarrista The Edge, e a imagem é cortada para um sobrevoo pela costa da Irlanda e, em seguida, o cais de Dublin, com seus atracadouros, guindastes, reboques e toda a fauna de mecanismos portuários.
É nesse corte entre o cover do primeiro heavy metal da história cantado por um apoteótico Bono e a balada quase celta cantada com timidez pelo guitarrista que surge o espaço para mostrar em poucas cenas a origem do grupo. Das imagens do cais, a câmera vai para dentro de um armazém e ali, ao invés de sacos e fardos, encontramos a banda disposta em círculo no centro do espaço, amplificadores em volta (talvez uma referência ao Live at Pompei do Pink Floyd).
E aquele espaço de cargas passa a armazenar e reunir aquela música que, após mais um número, o hit Desire, salta novamente para a grandiosa turnê. E assim, o mecanismo narrativo que o porto sugere conta mais sobre a banda do que a entrevista com seus integrantes.