ADEMIR DEMARCHI
“Como se eu tivesse asas”, título das memórias de Chet Baker, é uma perfeita descrição para o que foi sua música, uma sonoridade que, em seus melhores momentos, parece nos transmitir leveza e a sensação de voo alcançada por sua interpretação intimista. Com essa característica Chet acentuou o que viria a ser conhecido como “cool jazz”: uma música de poucas notas, tranquila e mais intimista, oposta ao bebop intenso de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Bud Powell, que enfatizavam a música com um ritmo veloz e fraseados cheios de notas.
Jorge Zahar Editor publicou no Brasil as memórias de Chet com o subtítulo americano, Memórias Perdidas, que enfatiza mais a ideia da “geração perdida”, da qual James Dean foi o ícone, que propriamente sua música. No entanto essa foi sua vida, um músico excepcional com uma entrega à perdição pelas drogas, daí que se pode, também, entender que o título principal, por sua ambiguidade, pode se referir ao seu estado de drogado. Mas não apenas, pois ressoando um romantismo às vezes meloso cai numa das músicas que interpretou, Let’s get lost, que também serviu de título para um ótimo documentário feito em 1988 por Bruce Weber sobre a vida atribulada de Chet.
Nessas memórias se pode ler, pela própria narração de Chet, sua juventude a partir da entrada no exército e sobre como, no pós-Segunda Guerra, feito o alistamento, foi enviado para a Europa, saindo de dentro de um apinhamento num “navio uterino”, conforme ele mesmo diz, para a efervescente Berlim e como, em meio a superiores mal-encarados enveredou pela música. Sua narração passa pelos amores desastrados, pela descrição da rotina nas prisões, pelas relações sempre tensas com a polícia ou com leões de chácara valentões.
Destaca-se o trecho em que relata como conheceu sua segunda mulher, Charlaine. A primeira, na juventude ainda morando nas casas dos pais, engravidou e teve que fazer um aborto por pressão dos pais dele, por absoluta falta de condições econômicas para aguentar essa barra que ia pesar ainda mais. A outra, Charlaine, ele a descreve como uma “bela loura sentada no bar”, “fui furando a massa de gente do clube até ficar ao seu lado. Não me lembro o que disse exatamente, mas meia hora depois estávamos dentro do Buick do pai dela, estacionado ao longo dos rochedos de Palos Verdes”… “ela adorava ser comida e eu adorava comê-la.
Uma vez, em frente à casa dela, em Lynwood, trepamos nove vezes em três horas. Mas o problema é que eu não era o único. Havia um outro pilantra que também gostava da atuação dela. …discutimos e, por causa disso, realistei-me na banda do Sexto Exército, em São Francisco, num compromisso de três anos”… Seis meses depois se reconciliaram e se casaram em Las Vegas. Ela o aguentou em suas prisões, ajudou a escapar de flagrantes de droga e muito mais. Após esses seis meses também ele havia se cansado do Exército e tentou se desvincular, mas o transferiram para um forte no Arizona, a 48 km da fronteira mexicana, onde “a erva custava só trinta dólares o quilo” e por isso “todo mundo vivia doidão”…
A memória que se tem de Chet Baker é tão indissociável de seu trompete quanto de sua vida trágica gasta nas drogas, especialmente a heroína, que foi secando e enrugando sua face ao longo dos anos, também sugada pela falta de dentes arrancados a porrada no final dos anos 1960 em uma pancadaria aplicada por traficantes pelo não pagamento das drogas consumidas…
Depois de se livrar do serviço militar, Chet começou a tocar na banda de Vido Musso e logo passou para a banda de Stan Getz. Começou a ser respeitado no meio musical e em 1952 foi escolhido para tocar com Charlie Parker durante sua turnê pela Califórnia e Canadá. Já era um sucesso, que o levou a estrear no Tiffany Club de Los Angeles e em seguida compor o quarteto de Gerry Mulligan.
Essa década de 50, da geração perdida, foi também a da sua intensificação no vício e de várias passagens pela prisão. Mas era apenas o começo. Impossibilitado de tocar em casas que vendiam bebida por causa do vício, tentou uma ida para a Europa para escapar da barra pesada nos EUA, mas esse voo não surtiu muito efeito. Ficou quase um ano e meio preso na Itália, depois foi preso na Alemanha, enviado para a Suíça, depois para a França e então para a Inglaterra. De lá foi deportado para a França e após mais uma prisão na Alemanha, foi obrigado a voar para os Estados Unidos…
Em 1956 Chet se casou com Halema, uma paquistanesa com a qual teve um filho, Chesney Aftab Baker, em 1957. Durou até 1959, quando Chet saiu para fazer um show e deixou Halema e Chesney com o escultor americano Peter Broome em Paris. Broome e Halema se envolveram, o escultor adotou a criança.
Chet teve vários ótimos momentos em sua carreira, apesar dessas constantes quedas. Dois desses momentos mais interessantes foi na Itália, onde gravou pelo menos dois discos muito interessantes. Um deles é Chet Baker – 1959 Milano Sessions, com Len Mercer e sua orquestra em que também se inclui gravações com seu sexteto. Os arranjos orquestrais, alternando ou fazendo fundo, mas com um corpo bem mais amplo que as habituais sonoridades dos pequenos grupos de jazz, dão uma espécie de trono para seu trompete reinar em sonoridade e majestade de forma rara, alcançando outros sentidos sonoros para além daqueles do ambiente jazzístico em que sempre se saiu muito bem.
O outro disco é Chet on Poetry, de 1988, especialíssimo pelas inusuais leituras de poemas que ele faz do lírico Gianluca Manzi e do compositor Maurizio Guercini. Em contraponto àquela numerosa presença de instrumentos sonoros, nesse se destaca o intimismo do estúdio de gravação, entre poucas pessoas, acentuando a peculiaridade das vozes e dos instrumentos, em um resultado que é também muito diferente das performances em meio ao público das casas de show e bebida. Desse disco pode se destacar um dos poemas de Manzi que, lido no texto, pode ser interpretado por certo tom de melancolia e solidão sinônimas da vida de Chet. Contrariamente, porém, a composição de Stilo e a interpretação de Chet são “para cima”. A seguir, a tradução.
THE PARTY IS OVER
(G. Manzi – N. Stilo)
The party is over
the party has never begun.
The lights
that I put out in my house,
the night turns back on
for me alone
The party is over
the party has never begun.
The lights
that dawn puts out in the street,
the lights still stay on
for me alone
The party is over,
the party has never begun.
La festa è finita,
la festa non è mai cominciata.
Le luci che spengo nella mia casa,
la notte le riaccende
per me solo.
La festa è finita,
la festa non è mai cominciata.
Le luci
che l’alba spegne nella strada
restano ancora accese
sole in me solo.
La festa è finita,
la festa non è mai cominciata.
A FESTA ACABOU
(trad. Ademir Demarchi)
A festa acabou
a festa nunca se iniciou.
As luzes
que apago em minha casa,
a noite as reacende
para mim apenas.
A festa acabou
A festa nunca se iniciou.
As luzes
que a madrugada apaga na estrada
ficam ainda acesas
para mim apenas.
A festa acabou,
a festa jamais se iniciou.
O livro de memórias chega até 1963 num final de estilo já telegráfico. Dois anos antes, em 1961, Chet conheceu a atriz inglesa Carol, na Itália. Eles se casaram em 1964 e tiveram três filhos: Dean, Paul e Melissa.
Chet esteve no Brasil em 1985 para duas apresentações no Free Jazz, que acontecia no Rio e em São Paulo. A organização do festival, prevendo confusões, contratou um médico que acompanhou o músico ministrando doses de metadona para amenizar o vício em heroína.
Chet, com sua larga experiência em buscar drogas, escapou da vigília e as conseguiu quase morrendo de overdose em uma suíte do Hotel Maksoud Plaza. O fim se anunciava, pois em 13 de maio de 1988, menos de três anos depois, Chet caiu do segundo andar de uma janela do quarto de um hotel em Amsterdã com 58 anos de idade aparentando 80 devido ao alto consumo de drogas e morreu.
Terminemos com mais um poema-canção de Chet on poetry, Waiting for Chet.
WAITING FOR CHET
(M. Guercini – D. Vavra)
Take me where I have already been bent over water outside the deserted mill invaded by brushwood. Make again
that fire. Hold in the right hand
the silks and velvets of blindness.
Portami dove sono già stato
chino sull’acqua fuori il deserto
mulino invaso dai rovi. Fa ancora
quel fuoco. Porta in palmo di mano le sete e i veluti dela cecità.
ESPERANDO POR CHET
(trad. Ademir Demarchi)
Leve-me onde me inclinei sobre a água num moinho deserto invadido por mato. Faça de novo aquele fogo. Traga na palma da mão a seda e o veludo da cegueira.