MANOEL HERZOG
Dizem que ele está de disco novo por aí, dizem tanta coisa. Eu, de minha parte acho que é tudo sandice, esse povo vê é coisa no seu devaneio, esse mesmo povo que idolatrava, uma parte dele hoje deu de odiar, falar o que não tem sentido nem nunca terá, heresia, apostasia, blasfêmia.
Chego a duvidar se ele existe, embora que já me chamou até pra ser gandula naquele time dele. Agora dizem que está aí, de disco novo, andam falando que é datado, que é machista, sai foto nas revistas, que ele anda pegando mulher casada, e mesmo lésbica, largou mulher e filhos, que bebe, usa o dinheiro público, não trabalha, vai trabalhar vagabundo. Tacam pedra nele, ele que faz a catarse de uma sociedade louca. Não lhes pediu favores, nem lhes emprestou dinheiro, mas ficam aí falando, dizem que tem uma pica enorme, e uma granada no saco, querem crucificar, como ousa. E ele é apenas mulato cantador de boletos, latinoamericano, cubano. Vá para Cuba.
Feito um Pégaso ou um Jesus, penso que ele existe noutro plano, lá onde o encontrei um dia. Aliás, eu nunca que imaginava um dia ir à sua presença. Cultuava só, respeitoso, repetia os mantrans, os hinos sabia-os todos, Mãe que ensinou. Quando me vi de frente a ele encarnado, o perceber de sua humanidade foi efêmero. Logo três filas se formaram atrás de sua pessoa, a oeste norte e leste, multiplicando todas as divindades que ele congregava.
Da fila oeste, a dos poetas, me fitavam Noel Vinicius Bandeira Cabral e tantos cujos semblantes eu deixava de discernir pro fundo da fila. Todos me olhavam como a um recém-nascido, e faziam um meneio de cabeça, afirmativo, como a dizer que eu estava iniciado.
Na fila norte pude divisar os grandes novelistas. Machado e Manuel Antônio e atrás destes Rosa Flaubert e Dostoievski e tantos. Por fim a fila do leste, a dos músicos. Antônio Carlos Garoto Pixinguinha Baden Nelson todos ali. Estes me olhavam com reserva, afinal eu era um violonista medíocre. Parece que o faziam por respeito às outras hostes.
Com tanta epifania claro que me pus em pranto. Balbuciava:
“Senhor Krishna.”
Ele, concentrando o ser naquela encarnação que eu via, falava com olhos generosos:
“Oh Arjuna de braços valentes. Ergue-te.”
Obedeci e tudo voltou ao normal. Então aquele senhor de olhos oceânicos, que havia segundos tinha revelado a arte dos eões, estendeu um copo de whisky e ficamos falando de literatura e samba.