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Sapataria: representatividade e resistência no underground

Vamos falar de feminismo lésbico? Na Primeiro Acorde dessa semana, conversamos com a Sapataria e trouxemos um pouco dessa reflexão. A banda de hardcore punk de São Paulo investe na expressão artística como ferramenta de conscientização.

Longe do mainstream, a Sapataria cria um espaço único de conversa com as fãs, trazendo representatividade lésbica aos palcos da cena underground.

Sua história começa em 2016, quando Dani e Marina, respectivamente baixista e guitarrista, se reencontram. Elas já haviam se encontrado na caminhada lésbica de São Paulo, quando a ideia de uma banda de lésbicas era apenas um projeto distante.

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Quando Clara, a primeira baterista, e Zu, vocalista, mostraram interesse, a formação estava completa. Isa, a atual baterista, entrou na segunda abertura de vagas e está há um ano na formação.

Mix musical fluído

Musicalmente, cada uma trouxe suas influências para a banda. Enquanto Dani escuta de tudo um pouco, Marina trouxe o punk e Zu o RAP.

“Cada membra da banda escuta estilos bem diferentes, e acho que isso soma muito para o nosso som”, afirma Marina. A novidade vem com Isa, que traz um estilo regado de metalcore e post-hc, que aparecerá futuramente em novos sons.

“Gosto muito de JD Samsom (Le Tigre e Men). Foi a primeira referência que causou impacto para mim musicalmente e politicamente, pois me sentia pouco representada por garotas feminilizadas na cena Riot”, conta Dani. Entre Placebo, Dominatrix e Bulimia, a baixista sempre se encontrou no meio “punk-alternativo-andrógino”.

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Influências distintas

Para Isa, as referências permeiam alguns nomes clássicos, como Nirvana, Joan Jett e Phil Collins. Já Marina foi se encontrando musicalmente conforme se aproximou do movimento feminista.

“Cem por cento dos meus ídolos na adolescência eram homens. Depois que eu conheci o feminismo, acabei perdendo todos eles. Hoje me inspiro em mulheres próximas, como a banda Charlotte Matou um Cara”, conta.

Com influências nas riot grrrls, no punk e hardcore, a banda reinvindica a lesbianidade em cada acorde, fazendo seu manifesto. “Acho que tudo que te motiva e ensina é bem-vindo”, afirma Isa.

Raio-x do EP Sapataria (2018)

A banda lançou seu primeiro EP em setembro de 2018. O homônimo reúne versos que soam como crônicas, cada um comentando diferentes aspectos da realidade lésbica. Todas trabalharam juntas nas composições, que envolvem algumas de suas primeiras criações artísticas.

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“A composição sempre foi algo bem participativo. Alguma escreve algo interessante ou que estava entalado e a gente procura criar juntas uma métrica legal para musicar”, conta Dani. “Foi muito gratificante ver o quanto nós evoluímos juntas quando entramos no estúdio”.

As gravações do EP rolaram no estúdio GR, no Jaçanã, e duraram quase um ano. O projeto é artesanal, 100% independente, produzido com o dinheiro que a banda juntou da venda de camisetas em shows. Quase todas as canções têm relação ao que pelo menos uma das membras já passou, traduzindo realidades vividas pela maioria lésbica no mundo.

Zu descreve algumas das histórias por trás das faixas: “Eu escrevi Lourdes para minha ex-sogra, que nunca quis saber da minha existência, enquanto se o relacionamento da filha dela fosse heterossexual, o homem seria convidado para os almoços de domingo.

Experiência nas letras da Sapataria

Marina escreveu Carta aos Pais sobre o contexto lesbofóbico da época em que vivia com os pais, e também escreveu MSB – Movimento das Sem Banheiro sobre os momentos em que foi expulsa do banheiro feminino por ser confundida com um cara – e todas nós já passamos por isso. Enfim, no geral, as músicas fazem qualquer LGBT se identificar”.

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Letras sobre aceitação, romance, preconceito e violência dão voz à realidade. Todas as nove músicas autorais são pessoais, e trazem uma forte descarga de eletricidade aos shows, que contam com todas as composições da Sapataria no setlist.

Válvula de escape

A música, para as quatro, serve de refúgio. Como afirma Dani, “música foi a válvula de escape que encontrei com 16 anos para lidar de forma mais saudável com o peso das opressões”. É um porto seguro, em todos os sentidos.

Com público receptivo, o EP tem sido um sucesso, mas ainda há muito mais para ser dito. Sua música é um meio de sobrevivência e manifestação de resistência.

“A música salvou a minha vida e salva, todos os dias. Os piores momentos da minha vida foram os que eu não estava em banda ou tocando. Os melhores, sempre tem trilha sonora específica”, conclui Isa.

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Shows, a cena HC e as mulheres

Zu relembra o primeiro show da banda, em 2017, no CCJ, em São Paulo. “Inventamos de fazer um cover de Maiara e Maraísa, nossa, foi um desastre. Fico orgulhosa de ver o quanto melhoramos, o quanto ainda temos para melhorar e como é incrível ter o apoio das mulheres à nossa volta”.

Desde então, foram mais de 30 shows. No Festival Garotas a Frente, a Sapataria abriu para a Pussy Riot. Com mais de 700 pessoas na plateia, Marina define o evento como um marco em sua carreira.

Desafios

Muitos são os desafios para as minas em cenas como o hardcore, especialmente para minas lésbicas. Dani elenca alguns dos principais problemas: “misoginia, LGBTfobia, dificuldades financeiras”. Entre as mulheres lésbicas e trans, esse preconceito é latente.

O envolvimento feminino no HC sempre foi lento, mas está melhorando. Para Marina, ainda há muito a se fazer. “Acredito que ainda temos um longo caminho pela frente para tornarmos a cena das mulheres cada vez mais plural e diversa, revendo privilégios e aprofundando diálogos”.

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Também afirma a necessidade de unir a cena feminina ao todo, compondo grandes festivais de HC. “É melhor que a participação nula de alguns anos, mas ainda falta muito”, conclui.

“Se a postura não for de ‘se não gosta, problema seu’, implode”

Segundo o dossiê Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, pesquisa realizada por Suane Felippe Soares e Milena Cristina Carneiro Peres em 2018, o estado de São Paulo é o que mais mata mulheres lésbicas no Brasil. Somente de 2014 para 2017, houve um aumento de mais de 237% no número de casos.

Essa violência é consentida pelas artes, que limitam as mulheres lésbicas na indústria. Muitas não conseguem enfrentar essas barreiras com medo do ódio e preconceito, que em muitas situações, chegam a situações fatais.

A Sapataria sempre chega ao palco com uma postura firme, sem recuo. Para Dani, esse processo é sempre autêntico. “A gente sempre fala sobre algo que incomoda, impressiona ou algum problema, e deixamos fluir as coisas sem planejar muito”.

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“Orgulho de ser sapatão”

Para Zu, a primeira impressão no show já joga as cartas na mesa. “A primeira música do show sempre ser Orgulho [Eu tenho orgulho de ser sapatão…] é justamente sobre isso. Fica bem claro quem somos e para que viemos. É de certo modo um paralelo de como temos que nos impor na vida privada para podermos ser o que somos. Se a nossa postura não for de ‘se não gosta, problema seu’, a gente implode”.

O preconceito contamina a cena tanto em público, como entre bandas. É preciso muita coragem para sair da zona de conforto e produzir. E mesmo quando há bandas trabalhando nesses temas, a divulgação enfrenta barreiras de ódio.

Para a Sapataria, faz-se mais importante do que nunca assumir posicionamentos. “A revolta gerada por tanto ódio e preconceito pode ser expressa em música. Se esse espaço algum dia vai ser ‘dado’ pela mídia, eu duvido muito, mas a demanda existe e é a cena independente que está dando conta disso”, afirma Zu.

Política

A arte fortalece vários movimentos políticos no país. Para a banda, o vínculo entre música e política é natural e necessário. “Não dá para escolher ou desvincular as coisas. A política está em tudo, em cada ação intencionada”, diz Isa.

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“Se omitir também é se posicionar. E em tempos sombrios, se calar diante de injustiças é se posicionar ao lado dos opressores”. Dani corrobora, afirmando que todos os artistas têm esse papel político: “até pessoas que não se posicionam acabam corroborando para algum ideal de forma passiva. Quem se cala, aceita”.

Sapataria vai além do LGBT

O bate-papo sobre representatividade também precisa alcançar outros públicos. Fora das comunidades LGBT, o discurso ainda é visto com receio. Para as meninas, é possível levar o diálogo para fora das comunidades, mas é um desafio extra.

“Nós estamos começando a tocar em locais que não apenas rolês feministas, mas é necessário ter um pouco de paciência com pessoas que ainda não tem o mesmo nível de compreensão sobre alguns assuntos”, comenta Dani.

Para Zu, o principal fator é contar com a pré-disposição do público. “Nem que seja de aceitar, ouvir o que temos a falar. Isso acontece conforme somos chamadas para tocar em eventos mistos e maiores, com públicos variados”.

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Sem medo de barreiras

Barreiras existem, mas a Sapataria segue dona do seu próprio destino. Atualmente, competiram com outras bandas por um espaço no Line Up do festival João Rock, conquistando 271 votos.

Os planos para a banda cercam turnês, gravações e mais apoio, tanto de público quanto financeiro. Mas acima de tudo, o grande desejo é ter a mensagem da Sapataria levada para muitas pessoas. E esse é um sonho que todos nós esperamos ser realizado o quanto antes.

Foto: Marcela Guimarães / Divulgação

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