Pouco mais de quatro décadas separam o consagrado show dos Secos e Molhados no lotado ginásio do Maracanãzinho – que reuniu 30 mil pessoas no estádio e outras 90 mil no lado de fora, no ápice do sucesso da banda paulistana – da apoteótica exibição de Ney Matrogrosso e Nação Zumbi, no Rock in Rio, na noite dessa sexta-feira (22). E o tempo mostrou não ter força suficiente para apagar o legado de canções cunhadas sobre o signo que beira a perfeição. A sinergia no palco entre as distintas gerações do rock brazuca nos faz sonhar numa turnê sem data para chegar o fim.
O show mais aguardado por esse escriba – incluindo todas as edições do mega festival – revelou-se similar quanto meus sonhos mais mirabolantes. Explico! Nascido na geração errada, imaginava nunca ouvir as composições que formaram meu gosto musical executadas ao vivo e por seu cantor principal. A briga de egos entre os antigos integrantes do maior fenômeno mercadológico impediu uma possível reunião do trio. Assim, coube-me, apenas, ouvir fragmentos esparsos e atemporais dos seus ex-integrantes em esporádicas ocasiões que recordavam seus pioneiros sucessos.
O aroma das portas da percepção setentista tupiniquim parou pelo (midiático e nada roqueiro) Rock in Rio. E Ney Matogrosso, nos seus 76 anos, mostrou a mesma presença de palco de quando se tornou uma estrela em ascensão do primeiro time da música popular brasileira. A (sempre cristalina) voz do ex-hippie e ex-ator infantil reverberou com a mesma pungência de quando escandalizou “os bons costumes” do patriarcal Brasil da década do Ame ou Deixe-o. E todo o peso do maracatu brotado do mangue de Recife deu mais peso nas clássicas pérolas do Secos e Molhados.
O show começou a pleno vapor. E a releitura de O Amor (que havia caído na web, meses atrás) revelou que funciona muito bem no palco. A surpresa ficou por conta do poema de Solano Trindade, musicado por João Ricardo, Tem Gente com Fome. A letra altamente politizada – com direito a um Fora Temer!, de Jorge Du Peixe – deveria fazer parte do segundo (e derradeiro) álbum da banda, mas foi limado pela censura oficial. A canção ganharia mundo no disco Seu Tipo, de Ney, em 1979 – primeiro do cantor na multinacional WEA.
A versão low-fi de Sangue Latino arrepiou. Confesso, que a vontade de derramar lágrimas foi intensa, ainda mais num coro de milhares de voz que se somou ao ex-vocalista do meteoro multicolorido que iluminou o cinza escuro dos anos de chumbo. Delírio, do álbum que marcou a saída de Ney da banda, transformou a apresentação em um raro momento de plena esperança de um futuro vindouro. Sensacional.
Mas, nem tudo foram flores. As ausências de clássicos como Patrão Nosso de Cada Dia e Primavera nos Dentes deixaram incompleta a apresentação quase perfeita. Em compensação, ouvir Ney fazer segunda voz para Quando a Maré Encher e de Maracatu Atômico (do profeta do caos e mestre Jorge Mautner) compensou, em parte, a execução na integra dos dois primeiros discos do S&M. Ah, se caíssem na estrada…