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Arkie do BRock #5 – O legado da suíte progressiva da Turma da Esquina

“Eu apenas sou um a mais a falar dessa dor, a nossa dor”

Comum à partilha de alimentos registrada em Mateus 14:13-21, o experimentalismo nacional dividiu frutos na mágica década de 1970. No ano seguinte ao emblemático Clube da Esquina, Bituca voltaria a escalar amigos, distribuir tarefas, formar um time sensacional de músicos e abusar da criatividade para o trabalho único e essencial para entender a história da discografia do rock setentista tupiniquim.

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Batizado de O Milagre dos Peixes, o álbum é o mais denso e experimental registro do compositor. E foi eleito pela Rolling Stone como o 63º melhor disco brasileiro de todos os tempos.

Cada música tem o prisma de estilo híbrido, que compõe um interessante mosaico musical. É preciso ouvir algumas vezes para entender e absorver a densidade sonora. Traz em sua matriz elementos do acid jazz, raízes profundas da melhor safra do progressivo inglês, temas complexos e soluções criativas para driblar dois inimigos da arte musical daquela época: censura e limitações técnicas dos estúdios nacionais.

Lançado no período de forte repressão da ditadura militar, a obra é um retrovisor do cenário político daquele momento. As fortes canções e letras politizadas (a escancarar os porões dos Anos de Chumbo) não passariam ilesas pela censura. Resultado: cinco das oito faixas tiveram a totalidade de versos vetada – a versão remasterizada em CD ganharia mais três músicas, que saíram à época em um compacto triplo. E ganharam os sulcos do vinil apenas na versão instrumental (que são de arrepiar).

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Com a pressão dos censores, a gravadora EMI/Odeon quis suspender o álbum. E a obra só não foi engavetada porque Milton decidiu lançar o disco sem as letras – aos moldes dos jornais da época que publicavam versos de Camões, receitas de bolo ou espaços em branco nas matérias guilhotinadas pela censura.

O que faltou nos versos mutilados, sobrou na interpretação e acompanhamento musical impecáveis. A carga dramática carregada nos efeitos vocais dá dimensão exata do momento de extrema opressão. E, claro, resulta em rara beleza auditiva. É de arrepiar. Fragmentos de frases, berros e ecos (inspirados nas teorias de Marshall McLuhan) dão vazão à angústia daqueles tenebrosos anos. Pode-se ouvir misturado ao incrível volume sonoro gritos como “Estou cansado”, que se somam às (geniais) invenções na percussão do mestre Naná Vasconcellos.

Críticos atribuíram a linguagem e o experimentalismo como uma resposta direta à ditadura. Também os são. Mas, ali, começam a germinar as sementes lançadas ao solo no trabalho anterior (e teria mais uma safra no ano posterior). E também a inquietação para testar linguagens e o uso de novos timbres e acordes ainda inéditos no restrito mercado nacional.

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A sonoridade por vezes caótica do disco extrapola a santíssima trindade do rock´n rol (bateria, baixo e guitarra). Conta com instrumentos da música erudita (aí a gênesis do prog), órgãos distorcidos e percussões de altíssimo nível – no patamar de Sympathy For The Devil, do Rolling Stones, e Spill The Wine, de Eric Burdon & War.

Sem precisar se concentrar na métrica dos versos, Milton soltou a voz na necessidade de passar um recado além das palavras. E o fez de forma sublime.

O disco abre com um dos mais belos duetos da música brasileira, protagonizado por Clementina de Jesus e Milton (encontro que antecipa em quase uma década o homônimo Missa dos Quilombos). Na sequência, os falsetes vocais e o clarinete completam a letra suprida pelos tecnocratas: são mais de seis minutos numa intrínseca teia musical.

Os ecos inspirados em Pink Floyd, ELP e Gentle Giant misturados com a as músicas mineira, afro e latino-americana retornariam na última faixa do lado A. Ganhariam roupagem definitiva na sequência final do lado B. E termina com barulhos de talheres, conversa e um piano distorcido e nostálgico – semiótica para escancarar a tesoura opressora da censura.

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A penúltima faixa guarda a história de um encontro que a música brasileira não viu: Milton Nascimento e Dorival Caymmi. Eles planejavam cantar juntos na gravação de Hoje é dia de El Rey. A letra foi inteiramente riscada pelo seu “conteúdo nitidamente político”.

A composição retrataria o conflito entre duas gerações. Pai e filho dialogariam num clima de alegorias pesadas e atmosfera musical densa e expressionista: ‘Não pode o justo sobreviver/ Se hoje esqueceu o que é bem querer/ Rufai tambores, saudando El Rey/ Nosso amo, senhor e dono da lei’ – como resumiria o refrão acima, suprimido junto com o restante da letra.

Era direto demais para passar batido. Mesmo sob o crivo dos censores, a ficha técnica faz menção de que existe uma letra assinada por Márcio Borges – composição que ficou nos porões por mais de três décadas. Sem as palavras, Milton carregou a voz em onomatopéias e técnicas vocais impressionantes. Gerada a fórceps, a canção torna-se sem parâmetros. As variações sonoras ao longo dos três movimentos da música fazem dela uma obra-prima sensorial.

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Um ano depois, o progressivo barroco mineiro ganharia mais um capítulo: o álbum duplo O Milagre dos Peixes ao vivo. O LP surgiu após apoteóticas apresentações no Teatro Municipal de São Paulo. Milton atravessava o momento mais criativo de sua carreira. E estava acompanhado da derradeira formação do Som Imaginário. O álbum abre com uma das mais emblemáticas peças do supergrupo mineiro. Mas, aí, é assunto para a próxima semana.

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