RICARDO AMARAL
Era 1981. Meus pais se separaram e, obviamente, aos meus 17, os cuidados com o destrambelhado que eu era eram totais. O anúncio! SHOW DO QUEEN NO MORUMBI! Houve uma espécie de frenesi nacional e eu sabia que tinha que ser rápido! Batata! Nenhum dos dois deixou…
Juntei meus trocados e comprei o ingresso. Um amigo maior de idade me contrabandeou para dentro de um dos ônibus de excursão, onde fiquei trancado no pequeno banheiro até os túneis da Imigrantes.
Estava prestes a presenciar um dos maiores espetáculos de minha vida. Ao chegar, como “bom filho”, no meio de uma barulheira infernal, usei o orelhão atrás do gol (lembra??!!) e liguei para o meu pai. Anunciei que estava bem e, quando ele começou a gritar, desliguei! Graças a Deus nada aconteceu, corri muitos riscos, mas valeu tudo!!!
A marca de um estilo. A potência e o lirismo do Queen são simplesmente incontestáveis. Atrevo-me a declarar aqui que, em minha opinião, Freddie Mercury é o maior vocalista da história do rock. Três oitavas e um falsete inigualável. A majestade de sua presença no palco. Ele era a “Rainha”, a graça daquele cuja vida foi ceifada pela maldita síndrome que destruiu toda uma geração de pessoas incríveis, muitas delas meus amigos.
Mas hoje, tendo que escolher entre discos incríveis, minha homenagem vai para A Night at the Opera (1975). O nome do LP já anuncia uma fusão de estilos e tendências que apenas havia sido colecionada no fantástico Sgt. Peppers (pronto, lá vou eu de novo….)
O piano abre em “carnival’ a estonteante Death on Two Legs. A guitarra de Brain May, cujo timbre é inimitável, saúda os ouvintes como que dizendo: “Tudo mudou!” A letra de Freddie é um desabafo quase agressivo. Os primeiros versos da canção gritam: “Você suga meu sangue como um sanguessuga! Você levou todo meu dinheiro. Desrespeita a lei e foge. Aperta minha cabeça até doer. Você levou todo meu dinheiro e ainda quer mais!” O ódio na interpretação e a pressa ao iniciar um verso sem pausa na sequência do anterior são uma aula de expressão poética.
O mais incrível é a escolha da segunda faixa. Sem intervalo, uma pianola de bar do início do século 20 anuncia Lazy on a Sunday Afternoon. Mercury trata da cronologia de uma semana masculina surreal, suavizando o impacto da canção antecessora e iniciando a fileira de mudanças de estilo proposta pelo disco.
I’m in Love With my Car, idolatrada por todos os bateristas que conheço, traz no vocal o também compositor Roger Taylor, responsável pela excelência da percussão da banda. A música é visceral! Brian May intercala seus solos agudíssimos com a transposição de tom-tons de Taylor. Na minha época, escutar esta música dirigindo era quase um delírio! Hoje, fica só o sonho da velocidade exprimida pela interpretação de Roger Taylor.
Na sequência, John Deacon, baixista, traz sua composição You’re my Best Friend, escrita para sua esposa. Deacon era um cara extremamente tímido e demorou um tanto para inserir suas composições. Esta música é uma declaração de amor e gratidão. O piano elétrico Fender Rhodes abre a canção. Deacon queria usar Rhodes de qualquer maneira. Freddie se recusou a toca-lo: “Quem quer usar um pianinho desses, quando se tem um piano de cauda de verdade”? John levou o “pianinho” pra casa e passou noites ensaiando. Ele toca o instrumento durante toda a música.
Bom, a faixa que vem a seguir é assinada pelo fantástico Brian May! 39′. Brian estudou astrofísica e se inspirou nos ensinamentos que adquiriu para compor esta imaginária viagem de um astronauta para um lugar distante, na velocidade da luz. O incrível é a melodia que ele escolheu: Um skifle, velho ritmo irlandês, o que traz uma contradição à escolha poética. Bowie, por exemplo, em suas viagens interplanetárias musicais sempre escolheu o ambiente espacial, cheio de efeitos especiais. John Deacon toca um baixo de pau e Taylor um set de bumbo, repinique e prato.
Sweet Lady, outra de May, é um “fast rock” executado com o distortion a toda na guitarra. O incrível desta canção é a métrica. 3 por 4, caindo para 4/4 no refrão! Taylor disse uma vez que Sweet Lady foi a música mais difícil de executar em sua carreira. Pouquíssimas vezes o baterista permitiu que fosse executada ao vivo.
Seaside Rendezvous, por Freddie Mercury, é um ragtime dos anos 1930, tipo Be my Clementine. Naquela época as pessoas iam a praia, nos fins de semana, para simplesmente relaxar e unirem-se em convescote, ou picknic, se preferir. Na gravação, apenas Mercury e Taylor. Todas as vozes são de Freddie e os instrumentos de sopro são imitações feitas com a boca por ambos os músicos. É uma delícia escutar Seaside Rendezvous.
The Prophet’s Song é um delicadeza de obra. A abertura com toques orientais nipônicos sugere a espiritualidade da letra escrita por Brian May. Trata-se da história da grande enchente, preconizada por muitas religiões como a prova da ira de Deus. O coral no meio da canção (Now I know) é uma brilhante obra de Mercury que executa nove vozes diferentes.
Chegou a hora no Morumbi! Love of my Life, obra-prima de Freddie Mercury. Poesia em todos os detalhes. A letra, a interpretação, os arranjos….. Mais uma vez, Freddie grava tudo sozinho. Brian entrou depois, com a guitarra magnifica…. Um momento barroco nos leva a um tapa de rock e o retorno ao estilo do início.
Quando Freddie Mercury, de calças de couro vermelhas, camisa do Super Homem inicia a execução com Brian May sentado em um banquinho de bar, uma emoção tomou conta dos dois. Uma plateia inteira, de 120 mil pessoas, cantando junto com Mercury e às vezes sozinha, sob sua regência. Emocionante! Que eu me lembre, foi a primeira vez que os isqueiros se acenderam para saldar a beleza daquele momento. Que saudade!!!
Good Company, Brian May, é um dixieland e talvez uma das únicas músicas sem qualquer participação de Freddie Mercury. A letra é sobre um conselho paterno: “Veja quem você chama de seus e mantenha-se em boa companhia”.
O disco encerra sua frenética aparição no mundo musical com o hino inglês, na versão maravilhosa de Brain May. Lógico que faltou Bohemian Rhapsody, o maior e mais incrível sucesso do Queen que levou este disco a um recorde de vendagens. Mas a música tem tanto o que comentar, que merecerá meu tempo e dedicação só para ela!