Arkie do BRock #4 – A suíte progressiva da Turma da Esquina

Arkie do BRock #4 – A suíte progressiva da Turma da Esquina

Quando Bituca chamou o adolescente Salomão para gravar um álbum, talvez nem o autor do convite pudesse imaginar por quantas esquinas mundo a fora chegaria a odisseia sonora dos mineiros. Talvez, em sua cabeça já fervilhavam incontáveis sementes prestes a germinar (bastar ouvir os trabalhos anteriores para ter certeza). Fagulhas de suítes e composições emblemáticas que se desenhavam nos casuais encontros das ruas do boêmio bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, no começo da década de 1970.

Era questão de encontrar um terreno fértil, que os ventos propícios da natureza se encaminhariam do resto. Ah, os fios invisíveis do destino: Milton Nascimento consolidaria ali a amizade cunhada há anos com um dos mais incríveis times de músicos já reunidos; o mundo ganharia o clássico Clube da Esquina, num dos capítulos mais criativos e ousados da discografia brasileira.

Há de quase tudo no pouco mais de uma hora de músicas no LP duplo, lançado em 1972, pela Odeon. Da (magnífica) versão do samba Me Deixa em Paz (Monsueto e Ayrton Amorim) – cuja interpretação de Alaíde Costa e Milton Nascimento é de tirar o fôlego – ao flamenco de Carmelo Larrea, na emblemática Das Cruzes. E, claro, o som inovador que evoca o barroco mineiro esculpido em pedra-sabão pelas mãos do mestre Aleijadinho e os morros característicos das Gerais.

Existem lampejos e nuances sutis do melhor do rock mundial de então, mesmo em um mercado tão fechado como o brasileiro do começo da década de 1970. Mas é na segunda faixa do lado B (ou a oitava música da versão remasterizada em CD) que essa viagem aos escombros do BRock se inicia: Um Girassol da Cor de seus Cabelos.

Sob o signo da segunda fase dos Beatles, a composição de Lô e Márcio Borges teve arranjo impecável, escrito por Eumir Deodato. E justamente na passagem da primeira para a segunda parte da música, as influências progressivas deixam suas marcas no álbum – não, não está escancarada, como nada nesse trabalho é assim tão fácil. Dura exatamente um minuto e resume o fusion dos instrumentos elétricos do rock aliados à estrutura rítmica das matrizes africanas, com pitadas de erudito e progressivo gerados pelas melhores safras inglesas e italianas. Um clássico!

Bituca faz parte daquele seleto grupo de gênios cuja melodia é facilmente reconhecida logo de cara, já nos primeiros acordes, dada complexidade e identidade enraizadas nas composições. A abrangência musical é tamanha, que no Festival de Montreux, na Suíça, Milton Nascimento torna-se um gênero musical. Miscelânea de sons capaz de aglutinar talentosos músicos e, a partir deles, lapidar sons que beiram à perfeição. E o Clube da Esquina resume este espírito e deu excelentes frutos.

Os desdobramentos do progressivo barroco mineiro também podem ser observados num trabalho (quase) desconhecido, lançado no ano seguinte. Sem divulgação ou empenho por parte da Odeon, a obra de estreia e experimental de Beto Guedes, Novelli, Danilo Caymmi e Toninho Horta ficou adormecida por décadas até ser redescobertas por novas gerações via web.

O disco dos quatro – também chamado de o álbum do banheiro, por a foto do verso do LP ser tirada sobre um vaso sanitário – carrega uma preciosidade do progressivo brasileiro: a faixa 4 do lado A, que tem em seu DNA parcela das bandas O Terço e 14 Bis –  Flávio Venturine e Vermelho, que fariam parte dessas duas bandas, assinam a co-autoria da composição. Belo Horror é uma suíte progressiva de seis minutos e 12 segundos de uma sequência clássica, num duelo inicial de órgão e bandolim. Perfeição.

Diz a lenda que a composição original tinha mais de 20 minutos regados de improvisações inspiradas na fase mais alucinógena de Pink Floyd e Yes, cujos registros se perderam das fitas de rolos de gravações demos. A letra politizada – num intrínseco jogo de palavras com menções a sugestivos pontos da cartografia mineira – e o longo tema não animaram os engravatados da gravadora. A ordem foi encurtar e acelerar alguns compassos. Mais uma obra de arte mutilada pelos pilares econômicos da (deturpada) visão mercadológica.

Era som pesado demais para a fase mais amarga da Ditadura Militar (1964-1985). No final da década de 1990, Beto Guedes revisitaria a obra no álbum Dias de Paz. Porém, com outra roupagem (um pouco mais dançante), letra e título – desta vez, foi rebatizada de Asas, com espetacular participação de Milton Nascimentos nos arranjos vocais.

A incursão dos mineiros ao subgênero inglês do rock não se limita a faixas esparsas. Está presente, por exemplo, no primeiro trabalho solo de Lô Borges. O famoso disco do tênis foi lançado na leva após o Clube da Esquina. A inexperiência em estúdio, a pressa para finalizar as composições e a idolatria ao quarteto de Liverpool deram ao trabalho timbres a incluir o álbum na gama de obras únicas da música brasileira.

O disco abre com porrada: um vigoroso e distorcido blues, em Você Fica Bem Melhor dá pista do que virá pela frente. Raro encontro de folk com delírios psicodélicos embala as demais faixas, com destaques para as peças instrumentais Fio da Navalha, Calibre, Toda Essa Água – sem dúvida, pequenas preciosidades do progressivo Made in Brazil.

Disco para colocar na vitrola e ouvir com calma ou excelente companhia para cair na estrada. Não à tona um tênis surrado ganhou a capa do disco, num desejo de liberdade que era sufocado nos anos mais tenebrosos da ditadura militar.

http://www.youtube.com/watch?v=0onKZzN7tAI

No caleidoscópio multicolorido daquela época, o primeiro (e único) álbum de Nelson Ângelo e Joyce Moreno é uma pérola obscura do rock brasileiro. O psicodelismo mineiro se une elegantemente a sonoridades típicas do Brasil, mas com tempero e influências vindas de fora.

As raízes bossa-novistas (que definiriam no futuro a carreira de Joyce) soam transcendentais ao folk mais psicoativo, que varreu o verão californiano no final da década anterior. A voz suave se contrapõe aos audaciosos arranjos. A sombria (e enigmática) Hotel Universal e a visceral Pessoa são belo resumo da viagem musical.

Quatro anos mais tarde, Joyce voltaria a trilhar por composições elaboradas e que fugiam das estruturas rítmicas tradicional. Antes da guinada radical para a Bossa-Nova, Joyce se uniria ao mestre Nana Vasconcelos e Mauricio Maestro para o (inédito no Brasil) Visions of Dawn – obra que foi lançada apenas na Europa e que é sensacional. (ouça aqui)

Tais trabalhos demonstram que as fontes a banhar os mineiros eram idênticas as aspirações mais eloquentes do primeiro time do prog mundial. E o admirável novo som proposto pelos membros fundadores do Clube da Esquina iria deixar raízes profundas na música brasileira. No ano seguinte, os mineiros entrariam de cabeça nas introduções e temas característicos do progressivo. Mas aí já é assunto para outro encontro.