Alceu Valença foi jogado entre as feras no caldeirão efervescente e tumultuado no final dos anos 1970. Afinal, registrar um show e transformá-lo em álbum não era das tarefas mais fáceis para artistas e técnicos no (ainda) desestruturado mercado fonográfico brasileiro. Gal Costa e Milton Nascimento até que se aventuraram antes (com dois clássicos do roque sob os trópicos: Fa-tal – Gal A Todo Vapor; e O Milagre dos Peixes ao vivo); mas a captação do áudio ficou aquém e exigiu esforço inimaginável. E o resultado deixa os fãs mais perfeccionistas desagradados.
Apesar das limitações técnicas e a falta de expertise nessa seara, Alceu Valença trouxe um gosto de hortelã para a suas composições mais psicodélicas. E em 1976, o compositor pernambucano cunhou Vivo!, breve panorama de sua fase recheada de riffs e solos de flautas inclinados às portas da percepção. O disco foi registrado no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, durante a realização do emblemático show “Vou Danado Pra Catende”, que escancarou as portas do showbiz brazuca para o representante da pernambucália.
O trabalho esboçou um resumo do primeiro álbum solo, lançado dois anos antes. Também indicou as raízes que marcariam os dois próximos lançamentos do compositor. E captou, ainda, a essência do artista, cujas apresentações passaram a fazer enorme sucesso de público e crítica. O improviso na produção do álbum era tamanho, que nas gravações foram utilizados dois microfones amarrados: um voltado para os músicos, outro para a platéia. O arranjo típico brasileiro não possibilitou a captação de todas as camadas sonoras produzidas no palco.
Espelho Cristalino, primeiro single do disco
O disco, tido como um dos melhores do cantor, foi responsável por apresentar Zé Ramalho da Paraíba para o eixo Rio-São Paulo. Os dois expoentes do que se convencionou chamar Udigrúdi – movimento cultural regado de componentes psicoativos que varreu Recife nos anos 1970 – já tinham experiências conjuntas em estúdio. Alceu participou das gravações do mitológico Paêbirú (1975, de Zé Ramalho e Lula Côrtes). E doses cavalares do espectro multicolorido da famosa trilha de Sumé ficaram estampadas no experimentalismo registrado com o calor do público (ouça as versões originais de Edipiana Nº 1, Punhal de Prata, Pontos Cardeais e Papagaio do Futuro, por exemplo).
Quarenta anos depois, Alceu resolveu dar uma roupagem nostálgica e sonoridade mais pesada ao clássico álbum setentista. E novamente sob o impacto de suas seminais apresentações ao lado do público. Agora, com a bagagem acumulada em sua carreira e aliado às novas tecnologias de captação de áudio. Vivo! Revivo!, que chega nesse mês, coliga preciosidades da visionária contracultura nordestina de então. O álbum que revisita a trajetória do artista em sua fase psicodélica foi registrado no Teatro Santa Isabel, em Recife. As gravações ocorreram no final do ano passado, sob a direção de Lula Queiroga.
Descida da Ladeira em nova roupagem
Vivo! Revivo! faz um apanhado do repertório dos discos Molhado de Suor (1974), Espelho Cristalino (1977) e do mitológico Vivo! (1976). E mergulha de corpo e alma nos timbres herdados das raízes mouriscas, ibéricas e dos cantos de povos escravizados – tríade da formação musical nacional. Som forte temperado a acido lisérgico e recheado de belezas líricas nas letras e melodias.
A trilogia melhor simboliza a produção criativa de Alceu naquele período de transformações, metáforas e barra pesada sob a penumbra dos Anos de Chumbo. E repousa num lugar de destaque entre as finas bolachas da psicodelia nacional. Trabalhos, aliás, que ganharam nesse mês reedições em vinil de 180 gramas. A caixa traz também o raríssimo (e semi-inédito no Brasil) Saudade de Pernambuco, gravado em 1979, durante o autoexílio do cantor na França. Nesse álbum, Alceu começa a retornar às raízes nordestinas, marca que o acompanharia nas décadas seguintes, deixando em stand by a verve mais roqueira.
Vivo!, de 1976, lançado pela Som Livre
As 14 faixas do disco que acaba de sair da fornalha (quase o dobro da versão original) resgatam uma conexão entre a música do sertão e as sonoridades do pop multifacetário do Verão do Amor californiano. E, embora ainda com as mesmas características setentistas, as novas roupagens dão ar de novidades nostálgicas aos clássicos do compositor pernambucano. São exemplo as (já emblemáticas) recriações de Papagaio do Futuro, Punhal de Prata, Anjo de Fogo e Agalopado.
A reedição do registro faz parte das comemorações pelos 70 anos de Alceu Valença. Ele chega a marca inspirando jovialidade e pungência sonora a dar inveja às novíssimas gerações. Coube aos fãs escolher o trabalho que ganharia nova vida no atual século. Com o mesmo frescor e gana de quatro décadas atrás, o cantor caiu na estrada em turnê com o repertório resgatado de sua primeira dentição.
Fuja da comparação com a fonte original. O som é superior graças aos avanços tecnológicos e anos de estrada dos músicos que o acompanha. Mas ainda está impregnado da mesma vivacidade de quando o cabeludo desconfiava de quem deixou o cabelo crescer no último ano e, também, do diabo a quatro.
Raras imagens do show que se transformou em Vivo!
Os timbres das guitarras até podem parecer semelhantes, mas há muito mais peso, distorção e atenção aos mínimos detalhes (talvez pela melhora na captação?). E mostra a evolução técnica do mágico som gestado por Paulo Rafael, líder da lendária Ave Sangria e músico a seguir Alceu desde os primeiros passos. Ele é o único integrante da trupe original que consolidou Vivo! como um dos mais emblemáticos discos brasileiros da década de 1970.
Versos e trechos de canções que na edição originais foram mutilados pela censura estampam a face oculta no novo trabalho. Nas apresentações, Alceu explica algumas nuances das canções e entendimentos sutis bordados nas entrelinhas. Pena que a mola a resistir contra a intolerância cultural tenha ficado sem ranger por tanto tempo.
Alceu fala sobre o Molhado de Suor para o Som do Vinil
Faltou, contudo, um acento maior nas flautas, que improvisavam uma ligação direta entre a Banda de Pífanos de Caruaru e os britânicos do Jethro Tull. E também se faz ausente Zé Ramalho, que era citado nominalmente na canção Descida da Ladeira e dividia os vocais em Edipiana Nº 1 e Papagaio do Futuro. Talvez por imaginar um reencontro entre os dois músicos que os fãs escolheram a reedição de Vivo! Mas as brigas e as amarguras típicas de uma amizade tão duradoura falaram mais alto que a arte do grande encontro.
Nas filmagens que vão gerar um DVD, Alceu usou a mesma roupa do show original da década de 1970. A capa do trabalho também mostra o hiato do tempo, com a sobreposição de fotos de Alceu Valença, datadas e 1976 e deste ano. Para os admiradores com menos de 35 anos, a atmosfera do álbum faz imaginar como seria a turnê do compositor pernambucano dias após o lançamento do Espelho Cristalino. Deviam ser anos mágicos de efervescência multicultural.