Quando a beatlemania se espalhou como um rastilho de pólvora pelos quatro cantos do mundo, Rita, Arnaldo e Sérgio davam seus primeiros acordes musicais. O trio que transformaria a história do roque tupiniquim era a atração apenas entre o restrito grupo de amigos escolares e vizinhos. A moça loira que “ia vir de uma cidade industrial” cantava o yê, yê, yê, no Teenage Singers, um obscuro conjunto vocal feminino. Já os irmãos Baptista eram os expoentes do grupo The Wooden Faces.
Era questão de tempo para fundir as duas trupes germinadas sob os signos sonoros de guitarras distorcidas do bairro paulistano da Pompeia. Cunhada de Six Sided Rockers, o sexteto (que contava ainda com Cláudio César, Raphael e Roberto) abreviaria seu imenso título para o singelo O’Seis – irônica expressão para a forma mais coloquial do pronome vocês. O grupo gravou, em 1966, pela Continental uma super-rara bolachinha com as músicas Suicida e Apocalipse. Nas duas faixas – um roquezinho ingênuo e descompromissado –, estavam estampados o DNA da verve irreverente e satírica dos jovens músicos.
Raro compacto com as raízes d’Os Mutantes
O compacto superou a incrível cifra de 200 cópias vendidas. O retumbante fracasso foi derradeiro para emergir das cinzas o que se transformaria na mais aclamada (e admirada) banda nacional. Naquele mesmo ano, e sem a metade menos conhecida do grupo, o trio restante reorganizou a alquimia sonora e rebatizou a colagem musical de Os Bruxos.
Nome talvez que estamparia os cinco (e principais) álbuns dos jovens irreverentes paulistanos se não fosse a intervenção de um aviador vindo das mais abastadas famílias cariocas obcecado por Beatles e ficção científica. Ronnie Von recebera a acunha de príncipe após ascensão nas paradas de sucessos radiofônicos com o hit Meu bem, versão de Girl, do quarteto de Liverpool. Não demorou muito para ele receber o convite e apresentar um programa musical nas noites de sábado. Fórmula que dominava a grade televisiva nos anos de ouro da música feita sob os trópicos.
Apresentação no Festival da Canção de 1967
O posto de rei fora dado de forma midiática a um capixaba que, antes de descobrir os acordes básicos gestados por Chuck Berry, se aventurou no banquinho e violão. Roberto Carlos chegava ao tão desejado sucesso pelas ondas da TV Record – então líder de audiência –, reproduzindo na capital paulista uma versão nacional do frenesi de fãs enlouquecidas pelos cabeludos diabólicos do rock´n roll.
A rixa que ajudou a projetar a Jovem Guarda também foi essencial para alavancar a carreira do trio paulistano. Por determinação de Roberto Carlos, artista e banda que se apresentassem no “rival” eram vetados das jovens tardes de domingo. O resultado: faltavam atrações para o Pequeno Mundo de Ronnie Von.
Os únicos alucinados que deram uma banana para o universo jovem-guardista foram Rita, Sérgio e Arnaldo. A suspensão do monarca fez com que Os Bruxos fossem presença constante no palco inspirado no arquétipo de herói infantil esculpido por Antoine de Saint-Exupéry.
A estreia televisiva aconteceu em 15 de outubro de 1966. E anarquia corria solta: Arnaldo, Rita e Sérgio tocavam desde Trini Lopes a Mozart. Apenas o nome da trupe não agradava. E fascinado pelas viagens literárias de Stefan Wul, Ronnie rebatizou o trio como Mutantes (retirado do clássico da ficção científica O Império dos Mutantes).
Anárquica versão para clássicas marchas de Carnaval
No ano seguinte, já com o novo nome, os três inquietos músicos seriam a espinha dorsal do terceiro LP do Ronnie Von. O álbum indicaria uma ruptura radical na carreira do cantor carioca, até então badalado pela crítica musical pelos belos pares de olhos e cabelos sedosos. E evidenciaria também um breve flerte do príncipe com as raízes da Tropicália – ouça Pra Chatear, cuja autoria é dividida com Caetano Veloso.
Movimento a qual Ronnie foi alijado por interesse mercadológico de então sua gravadora. Em represália, o aviador faria a mais radical viagem psicoativa da fonografia tupiniquim, mas isso é assunto para outro artigo.
E também num estúdio de Televisão – desta vez, na TV Bandeirantes –, os debochados adolescentes conheceram um gênio responsável por consolidar a história do trio paulistano. Rogério Duprat, o mago por detrás das anárquicas composições tropicalistas, viu suas malucas alucinações sonoras ganharem vida naqueles jovens ainda incipientes do apetite voraz das majores que dominavam o mercado fonográfico nessas terras além mar.
Sob as matutas do maestro, Os Mutantes foram apresentados a Gilberto Gil. O debute foi a gravação de Bom Dia, composição com complexas modulações na voz aveludada de Nana Caymmi. E a consolidação seria transmitida ao vivo, numa performance tão radical quanto às invencionices extraídas dos sulcos do Freak Out!, clássico álbum de estréia de Frank Zappa.
A alucinante (e derradeira) apresentação de Domingo no Parque (que obteve o segundo lugar no antológico Festival da Canção de 1967, perdendo apenas para Ponteio, de Edu Lobo e Capinan) colocou o trio no primeiro time da música brasileira. E carimbou o ingresso do trio à Phillips, então a maior gravadora em solo nacional.
Última participação d’Os Mutantes em festival da canção
Em julho de 1968, uma bomba de hidrogênio carregada de inspiração dilacerou o asséptico rock copiado da cena londrina que fazia a cabeça da juventude sessentista. O disco de estreia d’Os Mutantes traz em suas raízes as marcas do experimentalismo, com abruptas mudanças de ritmo, ruídos dissonantes e doses cavalares da pura linhagem lisérgica.
Era a contribuição brasileira ao psicodelismo que sacudia as paradas inglesas e norte-americanas. Tudo isso misturado às batidas extraídas de manifestações religiosas de matrizes africanas e o baião típico das zonas remotas do agreste nordestino. Salada sonora regada de guitarras distorcidas e técnicas de estúdios ainda inéditas por essas terras. Som para derreter a cabeça dos alucinados pelo gênero, mesmo quase meio século após as gravações.
Coube a Duprat sintetizar nas orquestrações as idéias lisérgicas que jorravam do trio. Inovações anos-luz à frente de bandas contemporâneas. E que deram ao álbum a nona colocação na lista entre os 100 melhores álbuns brasileiros, conforme (questionável) ranking da revista Rolling Stone.
O disco traz faixas compostas por diversas tribos, como o samba esquema novo de Jorge Ben Jor (antes dom músico abandonar o violão e suprimir o último nome), o pop universal da dupla Caetano e Gil, e o baião dos geniais Sivuca e Humberto Teixeira.
Apresentação televisiva com Fuga nº 2
https://www.youtube.com/watch?v=tLs_U394kq8
Naquele mesmo ano, o trio fez parte dos discos-manifestos Tropicália ou Panis Et Circensis e A Banda Tropicalista do Duprat. Nesse último, o DNA irônico se estampa na versão alucinógena de marchinhas de carnaval – no medley Canção Para Inglês Ver, de Lamartine Babo; e Chiquita Bacana do cronista João de Barro e Alberto Ribeiro.
Ainda sob os ecos do álbum de estreia, o trio subiu novamente aos palcos do Festival da Canção no final de 1968. Eles defenderam um dos clássicos instantâneos do grupo. 2001 ou Astronauta Libertado marcaria o feliz casamento musical com outro anárquico do cancioneiro brasuca: Tom Zé.
Os Mutantes radicalizaram na apresentação que garantiu o quarto posto naquela competição. Rita vestida de noiva estava acompanhada pelos irmãos Dias fantasiados de Dom Quixote e Sancho Pança. A clássica foto estamparia a capa do segundo álbum do conjunto paulista.
Especial para uma TV Francesa
O trabalho deixou evidente a atmosfera de experimentação e colisão musical que margeou o disco de estreia. Foi uma tênue linha entre a inovação e excessos sonoros, comuns nas colagens musicais. Já mais maduros e com bagagem musical, o trio desenvolveu composições complexas, como as (fantásticas) Dia 36 e Fuga nº 2 (essa, essencialmente baseada nas clássicas fugas de Bach).
E revelou a capacidade técnica de Sérgio Dias para domar a guitarra. Rita Lee daria os primeiros passos rumo ao estrelato, que a colocaria num capítulo a parte na história musical brasileira. Já Arnaldo deixava evidente sua mente criativa capaz de fundir diversas linguagens sonoras num pop universal que beirava as composições eruditas.
A veia vanguardista dos paulistanos pode ser resumida nas faixas que encerram o lado B do vinil. Qualquer Bobagem e Caminhante Noturno são clássicos exemplos do profissionalismo e do humor inteligente d’Os Mutantes. O trabalho teve o reforço do futuro quarto integrante da trupe, o baterista Dinho Leme (irmão do cronista de Fórmula 1, Reginaldo Leme), que foi creditado no LP como Sir Ronaldo I du Rancharia. E deixava escancarado o porquê de o som do grupo ser superior ao das demais bandas de então. Obra do fenomenal Cláudio César Dias Baptista, mas isso é assunto para a próxima coluna.