O prematuro aborto após experimentar sucesso arrebatador e as luzes da ribalta evidenciou a faceta caleidoscópica de Ney Matogrosso. Sem se deixar ser ruminado pelo funil do showbizz brazuca, o ex-artesão hippie manteve a postura desafiadora e inquieta que fez dos Secos & Molhados o maior fenômeno de massa brasileiro. Longe de qualquer rótulo, marca impressa nos mais de 40 álbuns da carreira, ascenderia seu nome em definitivo ao primeiro time da música nacional com um diamante bruto, dias depois de tirar a pesada maquiagem que mantinha oculta sua persona.
O meteórico sucesso da banda chegaria ao fim dia seguinte ao midiático lançamento do segundo álbum. Em agosto de 1974 – menos de um ano que a trupe havia alcançado o estrelato sem escala –, desentendimentos financeiros jogaram a pá de cal sobre a formação clássica do S&M. Sem a voz aguda e a alma por detrás das máscaras inspiradas no milenar teatro japonês, o grupo ficaria anos na geladeira, sem nunca mais experimentar uma fração do triunfo do passado.
Para Ney, a hecatombe serviu para reafirmar suas convicções e refinar ainda mais seu apurado gosto musical, nutrido a partir de diversas manifestações culturais. Aberto às ondas sonoras que varriam os quatro cantos do mundo na Era de Aquários, ele lapidou uma preciosa gema psicodélica/progressiva.
Primeiro compacto do Ney – Tango psicodélico?
Enquanto João Ricardo – um dos sócio-fundadores do S&M – era arrebatado para a Philips, gigante holandesa que dava as cartas na música feita no Brasil, Ney se manteve na Continental, o nanico selo genuinamente brasileiro e que mudaria de vez o roque feito sob os trópicos. Tendo carta-branca para explorar seu trabalho, a aposta do ex-hippie mostrou-se, com o tempo, mais certeira.
A reentrada para o sucesso estava impresso num compacto simples, gravado na Itália. A bolachinha com apenas duas músicas, uma de cada lado, é a estreia em voo solo do intérprete, que traduz em voz e (muita dose de) ousadia formas sublimes de bem representar uma canção no palco. As composições e os arranjos do disquinho são assinados pelo argentino Astor Piazzolla, que tocou acordeom e bandolim nas faixas.
Partiu do astro e protagonista da vanguarda sonora na América Latina o convite para o jovem magro e introvertido cantar as complexas composições. Como a barra estava pesada por essas bandas, as gravações da dupla ocorreram no Velho Continente, abrigo para intelectuais e artistas sul-americanos evadidos de seus países por questões políticas.
Os tangos com pitadas de rock psicodélico e andamentos fora do comum – embora genuínos Piazzzollas – têm (sensacionais) letras de Jorge Luis Borges (1899-1986) e do poeta brasileiro Geraldo Carneiro (autor das mais belas letras do prog. brasileiro). Duas bombas capazes de implodir a compreensão de censores, que as vetaram pelo conteúdo subversivo.
Era deveras ousado musicar a segunda parte do poema de Borges. Ainda mais se levasse no título o ano do brutal golpe democrático, o qual se valeu de militares de fantoches para a orquestração das elites econômicas (algo parecido com o que ocorre atualmente?). Sem referências diretas ao sinistro ano de 1964 no Brasil, o intelectual argentino se manteve perigosamente próximo à realidade política da época.
“Ya no seré feliz. Tal vez no importa/ Hay tantas otras cosas en el mundo / un instante cualquiera es más profundo / y diverso que el mar. La vida es corta”, berrava, como a derrubar o inimigo invisível. Obra-prima! O mestre argentino deu o incentivo que faltava a Ney a fim de reunir uma super-banda de apoio e cair na estrada.
Faixa que abre o trabalho de 1975
Após o ousado compacto, Ney se trancou no estúdio para finalizar o seu primeiro álbum solo. O trabalho é o mais radical e experimental da carreira do cantor, incluindo os dois álbuns do S&M. Lançado em 1975, o Long-Play Água do Céu-Pássaro teve produção de outro argentino exilado de sua terra natal: Billy Bond (sócio fundador da La Pesada del Rock’n’Roll, banda ícone do rock portenho; e que depois ingressaria ao – fantástico – Joelho de Porco).
O disco se inicia com quase dois minutos de cantos de pássaros, trovões, sons de macacos e de outros animais. A longa introdução a reproduzir as texturas da selva se choca com um berro descomunal de Ney, no refrão da canção Homem de Neanderthal – que também batizou a (mitológica) turnê inaugural do intérprete.
A gravação é a definitiva para obscura composição. A faixa teve apenas uma versão com a letra completa num raro compacto lançado no começo daquela década por Luiz Carlos Sá (que posteriormente seria conhecido pelo sobrenome curto no trio rural ao lado de Rodrix e Guarabyra); e outra elétrica e psicoativa feita pelos herméticos Os Lobos (interessante banda, que tinha nos vocais Dalto, que chegaria ao grande público nos anos 80 com os sucessos radiofônicos Muito Estranho e Pessoa).
Na faixa seguinte, Ney ratifica o pensamento de Leon Tolstoi. Ele pintou com tintas e nuances universais uma das mais emblemáticas composições da aldeia da MPB setentista. E se valeu de cítaras e distorções típicas indianas para a psicoativa (con)versão de Corsário, dos incendiários João Bosco e Aldir Blanc, dupla que foi dissolvida pelo sopro dos anos. O clássico popular absolveu as inúmeras brasilidades amparadas numa bela (e derradeira) roupagem progressiva. De arrepiar!
Corsário, de João Bosco e Aldir Blanc
Não existem pausas entre as faixas, que são fundidas uma as outras, tecendo um interessante mosaico sonoro com sons de natureza e experimentações vocais. O lado A ainda inclui a audaciosa Açúcar Candy (que Ney eleva para outro patamar) e Pedra de Rio. Fecha com um clássico instantâneo: Idade de Ouro, num misto de roque com baião psicoativo, recheado de metais, riffs e doses cavalares de distorções.
A segunda metade do vinil deixa evidente o perfeccionismo de Ney e também outras duas características que ainda o acompanham: dar vida nova e arranjos sensacionais a grandes composições de seu tempo. E a fase progressiva de Milton Nascimento ganha espaço com a sensacional releitura de Bodas (parceria de Bituca e o cineasta moçambiquense radicado no Brasil, Ruy Guerra).
A contestadora canção apareceu pela primeira vez no clássico Milagre dos Peixes – Ao Vivo, registrado em 1974, com o Som Imaginário. Basicamente acústica, a faixa conta com pouco mais de 5 minutos de uma intensidade dramática interpretada por Milton. No ano seguinte, Ney transformaria a música numa peça progressiva, com arranjos experimentais e performance vocal (perdão, Bituca!) a ponto de igualar ao seu autor (não me atrevo a usar o adjetivo superar). Por si só, a música colocaria o Água no Céu-Pássaro entre os mais fantásticos registros fonográficos do Brasil.
Versão da clássica Bodas, de Milton e Ruy Guerra
https://www.youtube.com/watch?v=plvtbi2CsJk
Mais ainda tem mais. Na sequência, Ney tempera com substâncias psicoativas e cores vivas um fado. Mãe Preta (Barco Negro) – de David Mourão e Ferreira, imortalizada por Amália Rodrigues – é de uma beleza estética a emocionar a alma com a performance carregada de elementos da melhor safra do psicodelismo mundial. O disco se completa com o clássico caribenho Coubanakan e a sensacional América do Sul.
Ney cumpriria mais dois álbuns pela Continental, mantendo a verve mais roqueira – chama que ainda queima em faixas de seus trabalhos atuais –, porém menos aberto ao experimentalismo. Bandido (1976) e Pecado (1977) trazem excelentes repertórios, com tratamento específico por faixas (mudança que passaria a dominar o mercado fonográfico nacional até os dias atuais).
Os três discos juntos com alguns compactos ganharam versões digitalizadas na década de 90. O resultado não agradou aos mais críticos, já que devido ao péssimo estado de conservação das fitas másteres a captação se deu a partir de vinis da época. Os raros discos originais são disputados a peso de ouro nos sebos brasileiros, europeus e do Japão.