Arkie do BRock #22 – As últimas flores e os voos solos de João Ricardo

Arkie do BRock #22 – As últimas flores e os voos solos de João Ricardo

Motor criativo dos Secos e Molhados, João Ricardo tentou manter ardente a chama do fenômeno que sacudiu o país em meados dos anos 1970. Embora intenso, o raro brilho foi tão fugaz quanto à formação clássica do grupo, que antecipou o florescimento midiático do rock brasileiro a partir da década seguinte. Com o abrupto fim da banda, o músico português radicado no Brasil foi catapultado pela gigante Philips. Sem sucesso, buscou emplacar nas paradas com dois álbuns solos de repercussões veladas, que podem ser classificados como extensões da trupe que dividiu com Ney e Gerson.

E, mesmo depois ao resgatar a antiga grife, não repetiu sequer uma fração da glória do passado. Pouco adiantou se cercar de músicos e produtores gabaritados, apostar em fortes canções e complexos arranjos. Ele já era um natimorto, trucidado pelo turbilhão do showbizz. Foi como se a magia houvesse evaporado após as intermináveis brigas que colocaram um ponto final no meteoro multicolorido sonoro protagonizado pelo trio.

Seu ingresso à gigante que dava as cartas na música feita no Brasil se deu pelas mãos de Guilherme Araújo, empresário que transformou a Tropicália num robusto movimento cultural de massa. Com carta branca e grande volumes de investimento na produção do material, João Ricardo era a aposta da companhia holandesa para reprisar o frenesi que sua antiga banda fizera dois anos antes. Por orientação da gravadora, João engavetou momentaneamente a grife S&M para assinar seu primeiro álbum-solo, que ganhou as ruas no mesmo período que os trabalhos inaugurais de seus dois ex-companheiros de banda.

Balada para um coiote

Para a produção do projeto, foi escalado o midas Mazola, que carregava na bagagem os primeiros discos de Raul Seixas e Rita Lee, e mixagem agendada para ser feita nos Estados Unidos (regalia que até então era dada apenas a Roberto Carlos). O disco teria lançamento em rede nacional com clipe no dominical Fantástico (como ocorreu no lançamento do segundo disco dos Secos e Molhados) e alardeado show de lançamento, numa estóica campanha publicitária.

Parecia fórmula pronta para estourar nas ondas dos rádios – e, consequentemente, na vendagem de discos; afinal, o João era o idealizador, diretor musical e principal compositor dos dois discos do S&M. E, apesar da briga via imprensa que mantinha com os dois ex-sócios-fundadores da trupe, João carregava a estigma de gênio musical e massa cinzenta a oxigenar o sucesso do grupo.  Entretanto, alguma coisa não estava sintonizada perfeitamente.

De forma oposta a qual Conrad e Ney fizeram com o soul e o psicodelismo, em seus trabalhos iniciais, respectivamente, João desafinou na dosagem do glitter rock, que varria as ruas londrinas no início daquela década. Esse era, sem dúvida, o caminho mais óbvio a seguir, já que Secos & Molhados ascenderam sem escala ao Olímpio fonográfico ao colocar na mesa o tabu da liberdade sexual. O descompasso não estava no bem elaborado som, mas no limitadíssimo mercado nacional. Assim, as odisseias de Ziggy Stardust e Aladdin Sane não encontraram ecos coloridos por aqui, ocasião que os Anos de Chumbo mostravam suas garras mais cruéis.

Trabalho inaugural da fase solo, de 1975

Os ruídos começaram pela duvidosa capa do homônimo Long Play, que acabou por batizar o álbum para a posteridade. Nela, João Ricardo aflorava o signo mais andrógino do BRock, numa (des)venturosa ousadia em desafiar o machismo sob os trópicos – algo parecido surgiria apenas alguns anos depois, com o baiano Edy Star. O cantor português aparecia deitado numa sugestiva pose, sobre um cetim branco, vestido da cabeça aos pés de tons rosas (daí o fato do trabalho receber a alcunha de Disco Rosa).

Ele carregava ainda gargantilha, pulseiras, broche e anéis femininos; indumentárias típicas do excesso de glamour e energia sexual que exalavam do rock mundial de então. E sugeria uma ferina provocação a Ney Matogrosso (e inspiração na capa do trabalho inaugural do Roxy Music); de forma superficial, uma tentativa de reeditar o choque que fez dos Secos e Molhados sucesso do grande de público. Era ousado demais. Os executivos da gravadora tentaram avisar sobre o possível fracasso comercial, mas sem muito eco para as fortes opiniões de João. Uma saída para evitar prejuízo maior foi extrair quatro faixas do álbum num compacto duplo, cuja capa trazia o músico numa foto “mais séria”, em preto e branco.

No disco completo, entretanto, mais farpas. Ao exigir para si o controle do grupo, transformado Ney e Gérson em meros músicos de apoio, João deu início a uma guerra surda. Os dois desafetos e escamoteados do grupo foram alvos fáceis da imprensa, que exploraram o escândalo como a um bizarro folhetim kafkiano. Recluso, o músico português utilizou o trabalho solo para dar suas respostas e alfinetadas. E elas podem ser sutilmente captadas em faixas como (a óbvia) Fofoquinha, Salve-se Quem Puder, Os Metálicos Senhores Satânicos e Viva e Deixe Viver.

A briga torna-se evidente na composição Vira Safado, música de trabalho do álbum rosa, que é uma sátira baseada no sucesso do primeiro disco do S&M. Naquele mesmo ano, Ney Matogrosso também gravaria uma provocação ao músico lusitano, ao fazer a (belíssima) releitura de Mãe Preta (Barco Negro), um fado do gaúcho Caco Velho (pseudônimo de Mateus Nunes) e eternizada pela cantora portuguesa Amália Rodrigues. E o cabo de batalha estava declarado sem nenhum sinal de armistício – guerra fria que se mantém até os dias atuais.

João explica o álbum de 1975

https://www.youtube.com/watch?v=reGwg05VdMs

 

O ponto máximo do disco, no entanto, é a excelente faixa Balada para um Coiote, que utiliza diversos elementos testados antes com sua antiga trupe. A composição compartilha a mesma linha de baixo e faz uma breve citação ao clássico O Amor, presente no disco de estreia dos Secos e Molhados. Clássico instantâneo! E méritos ao baixista Willie Verdaguer, integrante da banda argentina Beat Boys, que acompanhava Caetano Veloso na fase mais roqueira. Foi ele também que gravou o trabalho inicial dos S&M.

Nas guitarras, João Ricardo escalou Roberto de Carvalho. No ano seguinte, o músico seria arrebatado para o grupo Terceiro Mundo, banda que acompanhou Ney nos discos Bandido (1976), Pecado (1977) e Feitiço (1978) – os dois últimos sem o guitarrista, que havia ido para a formação final da Tutti Frutti, ao lado de Rita Lee. Apesar da qualidade, o disco Rosa não aconteceu e só foi redescoberto por novas gerações via internet.

Da boca para fora, de 1976

 

A volta dos Secos e Molhados

João tentaria mais um voo solitário antes de resgatar do limbo o nome Secos & Molhados. Em 1976, ele lançou Da Boca pra Fora, acompanhado de um trio de jovens músicos, entre eles o guitarrista Wander Taffo (fundador do Rádio Taxi, e ex-integrante do Made in Brazil). E apesar da capa mais sóbria e bom conjunto de músicas, o álbum também passou despercebido de crítica e público.

Depois os dois amargos fracassos, João resolveu reativar o seu antigo grupo com as algumas características do passado. Manteve Wander Taffo nas guitarras e recrutou o (excelente) cantor Nori Lili Rodrigues, que tinha timbres vocais parecidos com os de Ney. Em maio de 1978, quatro anos após o fim prematuro da primeira formação, os S&M retornam sem a androginia e com as caras limpas.

Que Fim Levaram Todas as Flores?

O disco conhecido como A Volta dos Secos & Molhados abre com um clássico do BRock, Que Fim Levaram Todas as Flores?. A faixa, que cheirava à fase áurea do grupo, era promessa de nova ascensão ao estrelato. E foi um sucesso nacional, levando a nova formação ao topo das paradas de sucesso e inúmeros programas televisivos. O disco é recheado de fortes canções, com inspiradíssimos arranjos vocais e de cordas.

Contudo, as flores já não cheiravam tão bem. Pareciam cenas repetidas de um filme antigo cujo roteiro era mal escrito (ou elaborado por um escriba preguiçoso). Diversos problemas entre os músicos, egos e brigas colocaram ponto final na segunda formação do grupo. João daria nova pausa no projeto para lançar seu terceiro trabalho solo, Musicar (1979). Apesar da excepcional Tem Gente com Fome (música que faria parte da primeira reunião do S&M, mas que foi vetada pela censura oficial), o disco é o mais fraco do músico português.

Com um álbum ainda por fazer, conforme exigia o contrato com a Phillips, ele reuniria novas fornadas de músicos para resgatar o seu antigo projeto. O quarto trabalho da discografia oficial da banda chegaria às lojas em 1980 e seguia mesma linha do álbum anterior. E faixas como Muitas Pessoas e Quantas Canções é Preciso Cantar deixam a sensação de novas levas de excelentes composições que abusavam de harmonizações vocais e de piano.

Os bastidores de Teatro?, 1999

https://www.youtube.com/watch?v=d4xnWJGifa0

O disco se encerra com uma releitura com arranjo reggae para o Vira Safado, música presente em seu primeiro álbum solo. Mais uma vez, o trabalho seguiu rumo à margem – e novamente, o músico culpou o descaso da major holandesa para o malogro. O resultado, entretanto, não agradou a João, que rompeu com a gravadora – ele passaria as próximas décadas numa briga com todos os selos. E encerrou outra vez ao grupo e partiu para um auto-exílio no exterior, jornada que durou mais de seis anos.

No final da década de 80, João montaria nova formação para lançar o quinto trabalho do grupo: A Volta do Gato Preto, o qual possui poucos momentos de inspiração e músicas totalmente ambientadas no (paupérrimo) som oitentista. A baixa repercussão do trabalho faz com que a banda fosse abandonada.

João Ricardo se manteria recluso pelos próximos 10 anos até lançar no final do século passado o álbum Teatro?. Gravado em apenas uma noite, o material é basicamente voz, violões, harmônica e percussão. Todos os instrumentos tocados por João Ricardo, que assume de vez ser ele a alma dos Secos & Molhados.

O Soldado e o Anjo, de 1999

https://www.youtube.com/watch?v=OAtZt7SW6Zg

Apesar das limitações técnicas, o álbum é um dos mais inspiradores do compositor desde o final dos anos 1970. Misturando letras afiadíssimas (como Sida – sigla usada em Portugal para designar Aids –, Tom de Dó e Puta), pedradas da melhor safra do BRock (Zanzibar, Teatro?, Rosinha e A Vermelha) e baladas inspiradíssimas (Louca de Pedra e a lindíssima O Soldado e o Anjo), as faixas bem que mereciam releituras plugadas com banda completa.

A partir daí, João passou a lançar esporadicamente material inédito com o logo S&M sem mais alcançar sequer uma fração do estrelato de outrora. O sonho até que se manteve ativo, embora escondido do grande público – vala comum aos melhores trabalhos do roque sob os trópicos.