EDUARDO BRANDÃO
Um petardo estourou nas rádios brasileiras no começo da década de 1970. A inusitada mistura de baião e soul narrando vida e obra de Padre Cícero levou da noite para o dia Sebastião Rodrigues Maia ao estrelato do show business. O (clássico) álbum de estreia de Tim Maia explorou a mais característica vertente do compositor carioca e abriu caminho para a junção de ritmos, o que marcaria a música popular brasileira de forma definitiva.
De leva, o disco consolidou a música negra no Brasil. Os mais tradicionalistas podem atribuir tal façanha a Roberto Carlos; lembrem-se: o Rei recorreu ao seu antigo amigo da ‘Haddock Lobo esquina com Matoso’ para gravar a sensacional versão de Não Vou Ficar. Antes, Jorge Ben, Wilson Simonal e Bossa Trio também usaram e abusaram dos metais, vocais e harmonias inspirados na música gospel em faixas esparsas. Mas faltava um catalisador.
O rhythm and blues sob os trópicos daria ao Síndico três anos consecutivos de vendas recordes – sequência interrompida com Racional, fracasso retumbante que levaria quase três décadas para ter o reconhecimento merecido. O sucesso despertou nas demais gravadoras o interesse pelo novo filão mercadológico que se abria. Artistas e bandas descobriram as raízes africanas e efeitos sonoros a lá Motown. E a turma soul se firmaria a partir do V Festival Internacional da Canção, com Toni Tornado e sua emblemática BR-3, da dupla Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. A nova onda teve adesão maciça: desde os “alienados” Os Incríveis aos engajados Caetano e Belchior.
Na segunda metade daquela década, a discothèque – uma evolução natural e comercial do soul – arrebatava fãs dentro e fora das pistas. A música feita para dançar conquistaria até mesmo os mais radicais do submundo do rock’n roll tupiniquim. As longas e enigmáticas composições deram lugar ao suingue e balanço da black music e funk – simbiose que recebeu a acunha de soul psicodélico, uma miscelânea de rock mais elaborado e soul.
Inspirados pelos ecos de Sly & the Family Stone, The 5th Dimension, Funkadelic, Eric Burdon & War e Grand Funk Railroad, os paulistanos do Som Nosso de Cada Dia exploraram (e muito bem) essa jazida. A banda teve vida efêmera. Lançou apenas dois discos e um compacto na década de 1970 – quase 30 anos depois, voltaria a se reunir para shows comemorativos e dois registros ao vivo.
Em 1974, a banda lançou seu primeiro trabalho. O (hoje) cultuado Snegs é um resumo do progressivo brasileiro. E um dos mais brilhantes, criativos e empolgantes discos do gênero. Após esse trabalho profundo – se você ainda não ouviu, corra! – a banda subverteu e enveredou pelo suingue funkeado, tendo a black music como fio condutor.
A gafieira ganhou o lado A do disco Som Nosso, de 1977. Batizada de Sábado, a primeira metade da bolacha abre com um torpedo: a sensacional Pra Swingar, com arranjo de metais e piano no patamar do primeiro time da Motown. São pouco mais de 16 minutos da mais rara combinação de elementos roqueiros e dançantes.
Ah, o admirável velho mundo do vinil.
No lado B – e tudo poderia ser diferente no lado B – a banda retorna às ambientações baseadas no jazz e no “avant-gard”. Chamado de Domingo, a segunda metade do álbum é repleta de temas para o deleite e relaxamento, típico de uma manhã ensolarada de domingão. Antes da prematura despedida, o Som Nosso de Cada Dia deixaria um compacto simples. E o título de faixa A inspirou o nome da banda carioca Black Rio, um dos mais cultuados grupo instrumental carioca.
O guitarrista Miguel de Deus é outro que seguiu os ensinamentos do reverendo James Brown. A guinada não foi tão radical assim. O suingue funkeado estava presente desde o único registro de sua primeira banda, Os Brazões. Lançado em 1969 pela RGE, o álbum tem raízes do tropicalismo, doses cavalares de psicodelismo, percussão com influências de matrizes africanas e nordestinas e (muitas) guitarras fuzz e wah wah. O grupo acompanhou a cantora Gal Costa na sua fase “psicodélica” e ajudou Jards Macalé a defender Gotham City no Festival da Canção. E fez parte de coletâneas espalhadas pelo mundo dedicadas aos sons mais psicoativos.
A junção de progressivo e samba-soul se consolidaria com o segundo trabalho, desta vez à frente da Assim Assado. A banda, cujo título e capa demonstram claras as referências ao Secos e Molhados, deixou apenas uma pérola pela nanica Companhia Industrial de Discos (CID). E ganharia formato definitivo no único trabalho solo de Miguel de Deus, o Black Soul Brothers. Obscuro e desconhecido, o disco é considerado um dos mais importantes da black music nacional. O álbum reúne apenas oito canções, com longos temas instrumentais numa atmosfera despretensiosa e festiva.
A seriedade e universo do progressivo ficam em segundo plano, dando vazão ao deboche e arranjos vocais bem próximos a gritos estridentes. A miscelânea funciona. Som de altíssimo nível, para até os mais sisudos fãs de progressivo afastar os móveis da sala e sair dançando.