O grito dissonante de Gal Costa em sua viagem radical e contracultural – fase de lisérgica peregrinação que rendeu quatro discaços entre 1968 e 1971 – não foi a única desventura feminina nos primeiros acordes do roque brazuca. O malfadado caminho que a dentição inicial do rock’n roll sob os trópicos percorreu até se firmar como fenômeno de massa jovem deve, e muito, à ousadia e sensibilidade típica das mulheres.
Visto com certo preconceito, tanto entre críticos quanto da intelectualidade à época que julgava interessante apenas as canções de protesto, os acordes básicos e as atitudes viscerais roqueiras aparecem em faixas dispersas de artistas alocadas no primeiro time da música popular brasileira – mesmo que algumas aqui citadas tiveram as suas raízes na Jovem Guarda, espécie de embrião da identidade do rock brazuca.
Para iniciar os trabalhos, uma polêmica tão ousada para os mais fanáticos fãs do que a constatação histórica de que o Kiss plagiou os Secos e Molhados – sim, eu creio na versão do Ney Matogrosso, endossada pelo mitológico Zé Rodrix, que produziu o clássico inicial do grupo paulistano.
Para a nova geração, ela é aquela cantora que viralizou nas redes sociais em uma – digamos – releitura para lá de emocionada do Hino Nacional. Contudo, nos anos 60/70, Vanusa era candidata ao estrelado midiático com canções melodramáticas sobre o amor, que hoje seriam empacotadas na categoria brega. E dona de capacidade vocal para empenhar com vigor os mais classudos discos roqueiros planetário. Duvida? Ouça de What To Do, faixa que encerra o lado A do disco lançado pela cantora, em 1973.
Vanusa – What to do
Notou alguma semelhança com um clássico do hard rock? O riff inicial e a nuance da faixa foram claramente copiadas por Black Sabbath, no Sabbath Bloody Sabbath. Antes que você imagine que se trata do contrário, o disco da cantora brasileira teve lançamento quatro meses anterior ao do grupo britânico.
Alguns detalhes dão combustível à discussão de cópia. O guitarrista e compositor Tony Iommi já assumiu que sofria de bloqueio antes à gravação do álbum clássico do grupo. Até um dia ele apresentou o riff ao restante da banda. Apesar das semelhanças e do estilo cru – totalmente distante das demais composições gravadas pela brasileira – a teoria de plágio é quase nula, visto falta de comunicação rápida entre o fechado mercado nacional. Mas que fica uma pulga atrás da orelha, isso fica.
Silvinha – Paraíba
Dona de um alcance vocal admirável, Sylvinha Araujo (1951-2008) começou sua carreira em corais folclóricos na bucólica em São João del Rei, Minas Gerais. Entre 1968 e 71, Silvinha lançou três discos pela extinta Odeon. Em seu último trabalho antes de se afastar dos palcos e se dedicar a jingles, a ex-esposa de Eduardo Araújo faz uma versão turbinada de dois clássicos do cancioneiro popular.
Em Paraíba, composição original de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, ela chega bem próximo às vocalizações de Janis Joplin. Detalhe para a inspiradíssima guitarra distorcida. Outra porrada roqueira presente no mesmo long play (com forte influência soul) é Risque, clássico de Ary Barroso.
Wanderleia – A Terceira Força
https://www.youtube.com/watch?v=zO1n8LZDb9s
Egressa da Jovem Guarda e ávida para se desvincular da imagem de Ternurinha, Wanderléa seguia a trilha deixada pelo companheiro de movimento, Erasmo Carlos, e se lançaria numa mistura de soul e rock. Em dois discos bárbaros, ela lapidou canções com essa mistura bem temperada. Vale ouvir com atenção no registro ao vivo, de 1975, Lp que leva o nome Feito Gente, do transgressor Walter Franco. E seu melhor trabalho, Vamos que Eu já Vou (1977), produzido pelo mago Egberto Gismonti.
Bacamarte – Último Entardecer
Presença constante nos programas de auditórios nos anos 1980, Jane Duboc enveredou naquela década para canções de fácil apelo comercial e de temáticas que exploravam a verve popular. A cantora romântica chegou ao sucesso com composições como Chama da Paixão e Sonhos. Contudo, antes de ser catapultada às paradas das rádios AM, ela gravou um dos mais antológicos clássicos do progressivo planetário: Depois do Fim, da lendária Bacamarte.
Joyce e a Tribo – Kyrie
Com raízes bem fincadas na bossa-nova, a carioca Joyce Moreno também percorreu longos desfiladeiros pelo universo roqueiro. Com a trupe mineira do Clube da Esquina – Nelson Ângelo, Novelli, Toninho Horta e Naná Vasconcelos – ela formou uma das mais fantásticas (porém, ignorada pelas gravadoras) bandas psicodélicas do País. O supergrupo deixou apenas alguns compactos e participações em coletâneas gravadas – como o sensacional Posições, dividido com a co-irmã Som Imaginário, Módulo 1000 e Equipe Mercado.
A Tribo logo foi dissolvida. Ela ainda manteve a pegada folck mais inclinada à porta da percepção no sensacional Nelson Ângelo e Joyce, cuja voz suave se contrapõe aos audaciosos arranjos. A sombria (e enigmática) Hotel Universal e a visceral Pessoa são belo resumo da viagem musical.