Não havia, no final da década de 1960, cenário mais propício para a musicalidade brasileira que o encontro das ruas Paraisópolis com Divinópolis. Foi na (lendária) esquina do boêmio bairro de Santa Tereza, na capital mineira, que acordes dissonantes alteraram para sempre os rumos da canção popular feita no Brasil.
Unindo progressivo, jazz, fusion, Beatles e vasta gama de raízes culturais (tão distintas quanto ilógicas) um supergrupo foi a espinha dorsal da fase mais criativa de Milton Nascimento. Ah! o Som Imaginário.
Formada no Rio de Janeiro para acompanhar o compositor carioca de “Três Pontas”, a banda enveredou pela psicodelia, garage, tropicália e a mistura de ritmos que só teriam apelo comercial no rock tupiniquim mais de duas décadas depois. Sempre, porém, com uma pitada das melhores safras do progressivo inglês – basta ouvir Tema dos Deuses, Sábado, Nepal e Hey Man, presentes no primeiro disco; e Uê, Xmas Blues e A Nova Estrela, que fecham o lado B do álbum lançado em 1971.
O grupo sinfônico gravou com o primeiro time musical brasileiro setentista, lista tão larga que embarca os melhores trabalhos de Gal Costa e Marcos Valle; Sueli Costa, Erasmo Carlos, Gonzaguinha e o popularíssimo Odair José.
A banda chegou a defender Feira Moderna (um petardo de Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant) no Festival Internacional da Canção. Um clássico instantâneo, que ganharia nova roupagem no acústico MTV dos Paralamas do Sucesso.
Após dois álbuns tão variados quanto suas formações, o Som Imaginário lançaria em 1973 seu derradeiro trabalho.
Matança do Porco não é somente uma catarse na (curta) trajetória da banda mineira. O álbum faz uma transição entre os caminhos trilhados antes pelo (épico) Clube da Esquina e as variações sonoras que ganhariam roupagens definitivas no (estupendo) Milagre dos Peixes.
E mesmo após seu prematuro fim, deixaria marcas no disco Gerais, de 1976 – ouça Caldera, Promessas do Sol e Minas Geraes (todas com os chilenos do Grupo Agua).
Alocado na categoria de obra-prima, Matança do Porco teve suprimido os vocais para dar maior vazão aos compassos, harmonias e arranjos instrumentais de tirar o fôlego. E forma, assim, uma teia complexas de temas que dialogam entre si. O disco é uma porrada musical que figura facilmente entre os melhores do gênero mundial. Difícil mesmo é catalogar um álbum tão eclético e denso.
Progressivo? Jazz? MPB? Erudito? Rock? Música Nova? Tudo isso e muito mais. Como os acordes geniais e solos épicos de Frederyko (ou simplesmente Fredera), um monstro na guitarra. Se você ainda não o conhece, procure o quanto antes o (clássico) Aurora Vermelha, seu primeiro álbum solo, lançado pelo nanico selo Som da Gente, em 1981.
Veja abaixo breve descrição do grupo, material editado a partir do programa O Som do Vinil, do Canal Brasil
A linha progressiva mineira está tatuada nos 35 minutos e 29 segundos do mais cristalino som. E é de arrepiar.
No Matança do Porco, Wagner Tiso assume a posição de líder. O virtuoso músico assina a todos os temas e arranjos, cuja sonoridade estaria impressa em seus trabalhos solos futuros. Razão pela qual o disco conceitual é erroneamente atribuído ao maestro mineiro – o que reduziria a papéis secundários as contribuições dos demais músicos.
As longas tramas são costuradas por pequenas suítes sinfônicas, que não ultrapassam 50 segundos, mas são elos entre as composições. Formando, assim, um mosaico musical a dar inveja a Pink Floyd ou Jethro Tull.
Nesse diálogo costurado por harmonias, bossa-nova, bolero, chorinho, jazz mesclado com muita lisergia se fundem num estilo único – que eu costumo chamar de progressivo barroco mineiro. Mas carrega em si um DNA roqueiro sem perder as raízes da popular música brasileira.
A faixa-título do álbum (ouça acima) é dividida em quatro movimentos e foi escrita para o longa Deuses e os Mortos (Rui Guerra, 1970). Em pouco mais de 11 minutos, a trama flutua entre solos catárticos (e milagrosos) de guitarra, piano e sintetizadores distorcidos, numa ilógica conexão entre Dave Brubeck e Emerson, Lake & Palmer.
E acompanhado por uma cozinha (Luiz Alves no baixo e Robertinho Silva destruindo tudo na bateria) de tirar o fôlego. Aliás, se você quer se tornar baterista, ouça o segundo movimento da peça – começa a partir do terceiro minuto e vai até o sétimo; ou melhor, preste atenção no disco todo.
Na quarta parte, Milton Nascimento solta a voz de forma sublime e angelical – como fez no Milagre dos Peixes; e explica o porquê ter recebido a acunha de Voz de Deus. Contribuição que também abre o registro ao vivo do mais robusto e anárquico trabalho de Bituca.
Com músicos oriundos das mais amplas vertentes musicais e com influências distintas, o Som Imaginário resulta num trabalho sem precedentes na história discográfica nacional – talvez se aproxime da fase mais progressiva de Egberto Gismonti.
Faltam referências também com grupos internacionais. É um trabalho sublime e essencial para entender o movimento musical gestado nas esquinas mineiras.
A curta discografia do supergrupo resume uma obra cheia de hibridismos, fruto também de um contexto social-político e cultural sem igual na curta história brasileira. Um marco na contracultura.
Quase meio-século após seu lançamento, o álbum ainda é atual. E conquista os fãs mais antenados nas longas tramas do prog. Pena o supergrupo ter durado tão pouco. Mas, afinal, era uma época de liberdade criativa sem precedentes dentro dos estúdios. Ah, o Som Imaginário.
Ouça na integra
Para saber mais
http://osomdovinil.org/somimaginario/