Sob ecos e revérberos tardios das gerações Beatnik e Hippie, Recife foi o berço de uma das mais interessante (e pioneira) cena independente da música brasileira. Na distante e provinciana capital de Pernambuco da década de 1970, acordes dissonantes, solos distorcidos, doses cavalares de ácido lisérgico e (muita) atitude desafiaram o senso comum do mainstream. E lançaram luzes para a produção cultural sob os trópicos, muito além do eixo Rio-São Paulo.
Afinal, fora dos principais mercados da produção fonográfica nacional existia uma mola que resistia. Mesmo com curta discografia, o Udigrudi (forma abrasileirada para se designar Underground) recifense é um dos pilares do psicodelismo brasileiro. Reconhecimento, aliás, que veio com três décadas de atraso e graças as trocas de arquivos e de informações pela internet.
A ousadia e as invenções sonoras para driblar as limitações técnicas dos precários estúdios de então resultam num multicolorido balaio, que faz uma ponte entre as raízes sertânicas e o ácido movimento que varreu a Califórnia no final da década anterior.
Gestada pelo signo do Kaos, a mola contracultural que deu uma lufada de inspiração no mágico cenário setentista nacional bebeu de diversas fontes. As mais óbvias vão da segunda fase dos Beatles, psicodelia californiana, experimentações da Tropicália (aliás, sempre superdimensionado o papel dessa turma na música brasileira), ruídos do Iê-Iê-Iê ecoados pela Jovem Guarda e o regionalismo do sertão.
Porém, a teia multicultural pernambucana embala elementos típicos ibéricos e árabes, em especial do Norte de África – que é a mais genuína herança dos Mouros na formação cultural latina – e timbres possíveis apenas no oriente.
A estreita relação entre o som produzido pela turma de Pernambuco e o movimento gestado pelos baianos vem do estupendo Quadrafônico. O álbum de estreia de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, lançado em 1972, é considerado o gênesis do Udigrudi (foi como o cenário se apresentou no sudeste e, assim, para o restante do Brasil). O trabalho teve arranjos e produção do mito Rogério Duprat, o gênio por detrás dos Mutantes e a trupe da Tropicália.
Na contramão da produção cultural de então, a cena não se limitou à música com vertente mais psicoativa, cujo bar Beco do Barato era a Meca do Woodstock ‘cabra da peste’. Teatro, cinema, artes plásticas e poesia também faziam a cabeleira despenteada da trupe, que abalou as estruturas da patriarcal e bucólica capital pernambucana. Criatividade florida a partir do clima de desesperança da agonizante ditadura militar.
Ouça o primeiro registo fonográfico de Zé Ramalho, no obscuro compacto Réquiem para um Circo – Made in PB
Similar ao emblemático LSE, o Laboratório de Sons Estranhos – espetáculo musical anárquico considerado a pedra filosofal da Udigrudi –, o selo Tramp recrutou artistas da atual cena psicodélica para novas roupagens à produção da Pernambucália, como o cenário também ficou conhecido.
O resultado é de agradar os fãs dos sons mais psicoativos. E colocam os trabalhos únicos de Ave Sangria, Flaviola e Marconi Notaro mais acessíveis às novas gerações.
O risco dessas coletâneas virtuais colaborativas que prestam homenagens a artistas ou cenários é esbarrar no óbvio. Não que os “clássicos” não possam ser revisitados de tempo em tempo – sim, eles devem! Mas beira a superficialidade ficar apenas no trivial. E ‘No Abismo da Alma, um Tributo ao Movimento Udigrudi’ o banal passa longe.
A grata surpresa vem com o neo-psicodélico dos soteropolitanos Astralplane. Com arranjos e timbres (impecáveis) dando maior vazão à poética letra, eles fizeram uma versão (quase) definitiva de “Esperança”, da Banda de Pau e Corda. Grupo, aliás, comumente aleijado da Pernambucália.
Nunca citados nas listas de discos essenciais do Udigrudi (a relação é curta e você encontra no fim dessa postagem), os quatro primeiros álbuns da Banda de Pau e Corda são quase impossíveis de serem desassociados do cenário que sacudiu a capital pernambucana. Em especial, o Vivência (1972) e o Redenção (1973), que foram relançados na virada do milênio em edição conjunta.
Explorando os timbres de violões com corda de aço e flautas, o grupo criou uma espécie de folk-sertânico-psicodélico. Sem esquecer, contudo, a genealogia da caatinga. A banda de Pau e Corda foi a primeira a “voltar” às raízes do frevo, muito antes de Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho – talvez por isso, caiu no esquecimento, junto com a Banda de Pífanos de Caruaru e o Quinteto Armorial.
As demais 18 faixas resumem de forma atraente a discografia do cenário recifense. Os amazonenses do Alderia resgataram uma pérola da (semi) desconhecida Phetus. O registro oficial só sairia do forno em 2004, na coletânea Beco do Barato.
E soou interessante ouvir novos timbres vocais nas rasgadas letras do Ave Sangria – banda de curta carreira, mas que gestou um clássico do BRock. Os pernambucanos do Graxa deram um peso extra na guitarra para a emblemática Geórgia, a carniceira.
Já os Primos Distantes transformaram a anárquica Pirata numa balada psicoativa recheada por sintetizadores inspiradíssimos. Fuja da comparação com o original: são dois parentes longínquos, mas que mantiveram as raízes familiares.
Ouça o áudio do show Perfumes Y Baratchos, raro registro ao vivo do “Rolling Stones do Agreste”
Os cariocas do Supercordas demonstraram o porquê de listarem entre as melhores da nova safra nacional. A releitura de Nas Paredes da Pedra Encantada soa tão onipresente quanto o registro talhado por Lula Cortês e Zé Ramalho, no emblemático Paêbirú. Do mesmo álbum, o pessoal do Bike deu uma visão à la Pink Floyd para Não Existe Molhado Igual ao Pranto.
Numa versão bossa-novista-psicoativa, os paulistanos do Aeromoças e Tenistas Russas suprimiram o vocal rasgado de Planetário, presente no Quadrafônico (1972, Geraldo Azevedo e Alceu Valença). A versão instrumental não deve nada à original. Na mesma linha, o Bombay Groovy garantiu ótimos solos e perfeita linha de baixo na nova roupagem de Pedra Templo Animal.
Fiéis às raízes anárquicas germinadas pelo Udigrudi, os gaúchos do Catavento subverteram. Eles transformaram a folk Palavras, de Flaviola e o Bando do Sol, num progressivo recheado de ecos, distorções e improvisações nos sintetizadores e flautas. Faixa inspiradíssima e um dos pontos altos do trabalho.
O clássico Satwa (1973, Lula Côrtes & Lailson) está muito bem representado por Meneio e os goianos Orquestra Abstrata. Já o pessoal o Luneta Mágica e os cariocas do Bilhão captaram o clima árido e nostálgico presente No Sub Reino dos Metazoários, torpedo sonoro de Marconi Notaro. Som de ótimo nível e amostra interessante para se aprofundar no atual e antigo cenário psicodélico brasileiro.
Único compacto do Aratanha Azul, uma pérola do Udigrudi
É de se lamentar, entretanto, a ausência de Aratanha Azul na coletânea. Eles gravaram apenas um compacto duplo pela lendária fábrica de disco Rozenblit.
O grupo se dissolveu antes mesmo do lançamento do disquinho, que é disputado por colecionadores no exterior e teve edição em vinil pelo selo inglês Mr. Bongo (gravadora que também reeditou Paêbirú). Seria interessante ouvir da nova geração releituras de A História de Vicente Silva ou Como os Aviões. Para a turma do instrumental, preste atenção em Escorregando e Temas. Quem sabe no volume 2 da homenagem?
Ouça No Abismo da Alma – Um tributo ao movimento Udigrudi
Discografia estendida
1972 – Quadrafônico (Alceu Valença e Geraldo Azevedo)
1972 – Quinteto Violado (Quinteto Violado)
1972 – Vivência (Banda de Pau e Corda)
1973 – No Sub Reino dos Metazoários (Marconi Notaro)
1973 – Satwa (Lula Côrtes & Lailson)
1973 – Berra Boi (Quinteto Violado)
1974 – Redenção (Banda de Pau e Corda)
1974 – Do Romance ao Galope Nordestino (Quinteto Armorial)
1974 – Ave Sangria (Ave Sangria)
1974 – Molhado de Suor (Alceu Valença)
1975 – Paêbirú (Lula Cortês e Zé Ramalho)
1976 – Vivo! (Alceu Valença)
1976 – Réquiem Para o Circo (Made in PB – Compacto Simples)
1976 – Flaviola e o Bando do Sol (Flaviola e o Bando do Sol)
1976 – Geraldo Azevedo (Geraldo Azevedo)
1976 – Assim… Amém (Banda de Pau e Corda)
1977 – Jardim Da Infância (Robertinho de Recife)
1978 – Arruar (Banda de Pau e Corda)
1978 – Zé Ramalho (Zé Ramalho)
1978 – Robertinho no Passo (Robertinho do Recife e Hermeto Pascoal)
1979 – Ao vivo em Mountreux (Ivinho)
1979 – Aratanha Azul (Aratanha Azul – compacto duplo)
1980 – Rosa de Sangue (Lula Cortês)
Discografia póstuma
1988 – Bom Shankar Bolenath (Lula Côrtes & Jarbas Mariz)
1996 – Má Companhia (Lula Côrtes & Má Companhia)
2004 – A Turma do Beco do Barato – Antologia 70 (vários artistas)
2006 – A Vida Não É Sopa (Lula Côrtes & Má Companhia)
2008 – Zé Ramalho da Paraíba (coletânea com raridade e apresentações ao vivo)
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Lailson de Holanda Cavalcanti
31 de agosto de 2016 at 14:51
Apenas alguns detalhes: a Banda de Pau Corda (muito boa, no que se propunha) não tinha nada a ver com o Udigrudi. Sua proposta era semelhante ao Quarteto Novo, Quinteto Violado (ótimos, também) e Orquestra (e Quinteto) Armorial,que, da mesma maneira, pertenciam a uma outra proposta conceitual e musical, buscando uma releitura regionalista e não uma fusão com o rock ou o progressivo/psicodélico. Na verdade, eles ABOMINAVAM o rock. Satwa é o primeiro disco do UDIGRUDI e antecede Sub Reino dos Metazoários, tendo sido produzido de forma independente por Lailson e Lula Côrtes. Faltou incluir “Caruá”(1978) de Paulo Rafael e Zé da Flauta. Outros artistas que de uma maneira ou de outra fizeram parte do período mas que lançaram discos pelo “mainstream” , não são necessariamente parte da discografia da Psicodelia Pernambucana. De resto, parabéns pela matéria. Lailson de Holanda (músico e compositor da era Psicodélica de Pernambuco – Satwa, Phetus e Beco do Barato)