Quando os três se uniram, cada um carregava bagagem musical distinta, estilos e visões de mundo diferentes. O carioca Zé Rodrix já rodara o mundo com o Momento4uatro e acabara de deixar a liderança do Som Imaginário. Luíz Carlos Pereira de Sá era compositor de renome no circuito universitário. E o baiano Guttemberg Guarabyra permanecia no inconsciente coletivo com o sucesso Margarida, que ficou em primeiro lugar no Festival da Canção de 1967, e conciliava a semi-clandestinidade da luta armada para derrubar a ditadura militar.
Eram ingredientes perfeitos para uma alquimia musical e o debute para um novo estilo (universal) do rock. Num mesmo caldeirão, eles misturaram Peter, Paul and Mary, The Byrds, Country Joe & The Fish, Crosby, Stills, Nash & Young, Bob Dylan, acordes do country europeu, toada e poesias para criar o que convencionou chamar de Rock Rural.
Estilo, esse, que ainda hoje é difícil de definir, embora soe como uma versão abrasileirada (e melhor lapidada) do folk rock norte-americano. E que foi explorado nos dois trabalhos assinados pelo trio e nos demais registros já com a dupla Sá e Guarabyra.
Mestre Jonas, faixa 3 do álbum de 1973 do trio
Era um som pop direto de alto nível, com pitadas de progressivo acústico e temáticas a explorar as nuances do universo rural, num momento histórico em que o país passava a ser predominantemente urbano. As composições complexas usavam e abusavam de violas, violões, rabecas, violinos e demais instrumentos de cordas (tanto de aço quando de nylon), sopro e arranjos vocais sublimes.
O gênero germinou sementes nos quatro cantos do país, como os gaúchos Almôndegas e Quintal das Clorofilas, os cariocas do Rui Maurity & Trio, os catarinenses do Expresso Rural, os pernambucanos do Quinteto Violado e sem esquecer os primeiros registros do Tarancón e Raíces de América.
E vindo das citadinas praias santistas, um supergrupo escreveu inspirador capítulo no turbilhão que varreu os anos finais da década de 1970: Recordando o Vale das Maçãs. Eles ficaram na 18ª colocação dentre as 100 melhores bandas de Santos, na enquete feita pelo Blog’n Roll, que ouviu jornalistas, músicos e militantes culturais da região – posição que, em minha humilde opinião, ficou bem aquém da qualidade e importância da trupe.
Fundada em 1974, o RVM teve várias formações. E ainda segue na estrada com releituras de seus clássicos e novas safras da melhor leva do progressivo.
Álbum de 1977, com o compacto de 1982 como bônus
A banda levaria apenas três anos entre os seus primeiros ensaios e o lançamento do petardo: o (clássico acima) Crianças da Nova Floresta, pela GTA, sigla para Gravações Tupi Associadas – selo que estava para a extinta TV Tupi, como a Som Livre está para a Globo.
O disco alocou a banda como uma das principais no gênero genuinamente nacional e dentre as grandes do progressivo mundial -o álbum é reverenciado no exterior, mercado que o RVM chegou a partir da metade da década de 1980.
Num misto de Yes, Premiata Forneria Marconi e os primeiros registros do também santista Renato Teixeira, o disco conceitual tem belíssimos arranjos e canções muito bem construídas. Os destaques são as excelentes harmonizações entre flautas, violões e percussão. E o clima de desbunde, caracterizado pela repressão política e os ventos vindouros da Era de Aquários, permeia as letras que retratam as benesses da simplicidade caiçara (sic, caipira).
O lado A segue a fórmula do som mais pop e universal. As músicas de curta duração têm fortes refrões, num clima alegre e recheado de misticismo. ‘Rancho, Filhos e Mulher’, ‘Besteira’, ‘Olhar de um Louco’ e ‘Raio de Sol’ completam uma sequência incrível. Já o lado B da bolacha, a faixa que dá nome ao trabalho vagueia por mais de 18 minutos hipnóticos, sem esbarrar em técnicas exageradas e virtuosismo enfadonho. Som de primeira.
Clipe de divulgação da TV Tupi de 1977.
Após o lançamento do trabalho, aconteceram as primeiras baixas na formação do grupo. Também a mudança do mar santista para as montanhas mineiras, que passaram a ser o ponto de referência do RVM. Esse capítulo também marcou uma sutil variação no som da trupe. O resultado pôde se conferido no compacto lançado em 1982, com as faixas ‘Sorriso de Verão’ e ‘Flores na Estrada’. As tramas mais elaboradas e quilométricas ficaram momentaneamente em segundo plano.
Quatro anos depois Fernando Pacheco – líder do grupo – convidaria alguns ex-integrantes da banda e lançou o sensacional Himalaia, já antenado ao progressivo instrumental.
Em 1994, o RVM lançou As Crianças Da Nova Floresta II, voltado para o mercado exterior
RVM é daquelas típicas bandas (quase) desconhecidas do grande público brasileiro, mas com legião de fãs no exterior. O trabalho dos santistas é admirado na Europa e Japão. Tanto que o grupo é considerado o primeiro integrante do time progressivo brasileiro a se apresentar no Velho Mundo – sem contar, claro, a excursão dos Mutantes, na década de 1970, antes de os paulistanos caírem de cabeça nas longas tramas e teias musicais.
O Recordando, contudo, não é o único representante de Santos no universo do rural roqueiro. Vindo do interior paulista, a Flying Banana carregou em seu DNA outro classudo santista: Passoca. O grupo foi formado em São José dos Campos, onde seus integrantes estudavam Arquitetura. E lançou um LP homônimo pela Philips em 1977. Logo depois, encerrou as atividades.
O trio acústico costurou seu único registro com chorinho, samba de breque e doses cavalares de Rock Rural. Livres de quaisquer tendências musicais, as composições têm características urbanas que ressaltam as raízes culturais regionais. O único vôo da trupe é de uma beleza estética surpreendente.
Primeiro e único registro do Flying Banana
Com o fim (prematuro) do Flying Banana, Passoca seguiu carreira solo. As distorções do estilo que bebeu do rhythm and blues deram vazões às pestanas, entonações vocais e a viola rural, típicos do interior paulista.
Sob influência de Renato Teixeira e Almir Sater, deixou os três acordes básicos do rock’n roll para se aproximar da música caipira. Ele lançou seis discos admirados pela crítica, com temáticas mais distanciadas dos grandes centros urbanos. Nada de terça em duplas vozes, letras beirando ao popularesco, acordes e melodias banais; Passoca trilhou numa das mais genuínas tradições interioranas: a sina de ser violeiro.