RICARDO AMARAL
Era julho de 1974 e fomos todos para Manaus a bordo do saudoso Ana Neri. Manaus era a Miami do começo dos anos 1970. Papai comprou um equipamento de som desses inimagináveis. Um receiver Sansui quadrifônico! Era a grande novidade. Em minhas pequenas mãos, aos dez anos, um disco preto… Um prisma no qual o faixo anacrônico se transforma num equinócio de cores. Tudo começava a mudar. Minha vida se resumia aos Beatles (o vermelho e o azul) um compacto simples do Elton John e dois longas dos Carpenters. Que som era aquele??!! Meu Deus! Com o passar dos anos (e da agulha) meu inglês revela, então, a maior obra de arte que jamais havia ouvido, em matéria de melodia fundida às letras.
Dark Side of The Moon foi todo ele gravado em Abbey Road, tendo como engenheiro de som o mesmo maluco do disco dos Beatles que levou o nome do estúdio: Alan Parson! A mesa de quatro canais e a mixagem nos fazem pensar para que é que hoje se precisa de tanta tecnologia. Speak to Me/Breath são um ensaio sobre solidão e medo da morte. Trazem uma ambiência sinistra de loucura que dispara o coração em On the Run, quando o aviso ao fundo prepara a saída do ônibus, como a pressa de viver.
A bateria eletrônica dá o ritmo aos passos rápidos da juventude. Helicóptero! Gargalhada macabra! Gritos… tudo recriado a partir de efeitos sonoros. Um avião! Explosão! Estilhaços! Alguém corre…relógios de corda! Vários! Muitos! Todos tocam e despertam ao mesmo tempo! Isso mesmo TEMPO! O coração bate acelerado e uma melodia aterrorizante, provocada por ro-ton-tons da bateria impecável de Nick Mason anunciam Time, para mim, a poesia mais linda do rock and roll.
Coloquem ai a música e sigam minhas emocionadas palavras, que desde garoto arrancaram lágrimas de todos meus amigos. Se você fala muito bem inglês, me desculpe, porque é assim que eu traduzo. Quer vocês queiram, ou não, é a hora da tradução…
“Deixando passar os momentos que fazem um dia monótono/ Você esbanja e desperdiça as horas de forma desajeitada / Pulando de um lado para o outro, num pedacinho de chão, em sua cidade natal. Esperando por alguém ou por algo que lhe mostre o caminho / Cansado de deitar-se ao sol, você fica em casa para ver a chuva / Pois você é jovem e a vida é longa / E tem tempo para matar hoje / E daí um dia você descobre que dez anos se passaram atrás de você / Ninguém te disse quando era pra correr / Você perdeu o tiro de largada! (Solo absurdo!) / E você corre…e corre para alcançar o sol, mas ele está afundando / E correndo por trás, para surgir mais uma vez atrás de você / O sol é o mesmo, de uma forma relativa, mas você está mais velho / Uma diminuição na respiração / E mais um dia mais perto da morte / Cada ano agora fica mais curto / Você parece não ter tempo para nada / Planos que ou se tornaram bobagens ou meias páginas de linhas rabiscadas / Esperar em desespero silencioso é o jeito inglês de ser / O tempo esgotou / A música acabou, embora eu tivesse algo mais para dizer / Em casa, novamente em casa / Eu gosto de estar aqui quando posso / Quando chego em casa cansado e com frio / É bom esquentar meus ossos ao lado da lareira / Bem longe, do lado de lá do campo / O badalar do sino de ferro chama os fiéis, de joelhos, para ouvir o encanto de suas palavras“.
(Sensacional, não é?)
The Great Gig in the Sky. O grande show (como concerto de banda) no céu! Neste momento, no estúdio, Roger Waters chama Clair Torry, vocalista inglesa, por indicação de Alan Parson para improvisar; improviso que vem já do final de Time. Um blues. O piano dá início a uma espécie de lamento, de sofrimento. Uma voz ao fundo suspira: eu não tenho medo de morrer! Por que teria eu medo de morrer! Era o zelador do estúdio, entrevistado também num improviso.
Eis sua fala: “And I am not frightened of dying. Any time will do, I don’t mind. Why should I be frightened of dying? There’s no reason for it — you’ve got to go sometime. Traduzindo: “E eu não tenho medo de morrer. Posso ir a qualquer hora, não me importo. Por que eu deveria ter medo de morrer? Não há razão pra isso — uma hora você vai ter que ir”. — Gerry O’Driscoll, zelador do Estúdio Abbey Road!
E começa o solo vocal mais lindo da história do rock! Angústia, prazer, desespero…. dor! Perdão, súplica, adoração! É preciso ser forte para não chorar, pois eu choro toda vez. Sagrado! Fatal! Enfim, orgasmos, ternura e sono… Tudo isso sem falar uma só palavra. Eterno! Celestial! Money!
Desde Wish You Were Here, a banda critica visceralmente o sistema vil e interesseiro do mercado do disco. Em Money, a ironia de ter tanto dinheiro e quase não saber viver por causa dele. O solo de saxofone, brilhantemente levado por Dick Parry, misturando-se ao ritmo de swing, lembra um hit de Ray Charles, quando a guitarra aguda e esgarçada de David Guilmor, domina a canção, fazendo com ela o que bem entende. Pauleira, blues, contracanto e mais uma vez rasga na pauleira! Money it’s a hit. Money it’s a crime. Nada mais a dizer.
Us and them! A canção icônica que poeticamente traz os pronomes Nós e Eles não no caso reto, mas na forma relativa, do caso oblíquo. Numa cara manipulação de retórica, jogando a narrativa para uma terceira pessoa. Genialidade de sempre de Roger Waters. A letra é um jogo permanente de opostos e contradições. E como a maioria das canções do disco, um blues maravilhoso.
Brain Damage é quase um roteiro de peça teatral. “O lunático está na grama”. “Os lunáticos estão no meu hall”. Como as canções de Bob Dylan, a narrativa posiciona a loucura como resultado do cotidiano: “Os jornais mostram seus rostos dobrados sobre o chão e todo dia o menino jornaleiro traz mais”. Uma alusão magnífica à insignificância humana diante da sociedade materialista. “O louco está na minha cabeça, você fez a mudança. Você me rearranjou até minha loucura. Você trancou a porta e jogou fora a chave. Há alguém na minha cabeça, mas não sou eu! Eu te vejo no lado escuro da lua”.
Tentar entender Pink Floyd é permitir que sua mediocridade não vença sua lucidez. É saborear a loucura sem se drogar. É vestir preto, deixar o cabelo crescer, a barba mal feita, mesmo de terno e gravata, careca e barbeado. É permitir que a juventude se instale em seu coração como um posseiro amoroso e bondoso. Como a garota na qual você pensa na hora que os escuta. Dark Side of the Moon não é disco, é um quadro que sai da parede e rasga seu sentimento como a lembrança de um entardecer, suavizando a vida e emocionando a cada vez que você repousa o braço da vitrola sobre o vinil, ou dá o play!