O que você está procurando?

Disorder - Caio Felipe

Disorder #12 – Os Beatles e a segregação racial dos EUA nos anos 1960

Todo mundo sabe que em 1964 os Beatles invadiram os Estados Unidos se apresentando no Ed Sullivan para uma audiência de metade do país e no ano seguinte tocaram no Shea Stadium para 55 mil pessoas, no que ficou conhecido na história como o primeiro show de rock em um estádio. Até então, além de todos os problemas técnicos para se realizar um show num estádio naquela época, não havia também um artista que pudesse justificar algo dessas proporções.
 
Esse show contou também com alguns números de abertura como Brenda Holloway da Motown e o saxofonista King Curtis (que com o The Kingpins foi o grupo de apoio da cantora Aretha Franklin), entre outros mas destaco esses dois pelo assunto do texto.
 
Você pode assistir ao show aqui.
 
O assunto da coluna é a a segregação racial dos EUA nos anos 1960 e como os Beatles tiveram um papel interessante em ir contra o pensamento de boa parte de um país racista.
 

Integrantes da seita racista Ku Klux Klan numa cerimônia nos EUA em 1957. Fonte: Acervo O Globo.

 
O documentário lançado ano passado, The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years (do diretor Ron Howard que fez Uma Mente Brilhante) retrata num geral os anos que a banda se apresentava ao vivo, a loucura dos shows, mas ele dá também uma enfase a essa parte da história (segregação racial) de uma forma não contada antes.
 
Começa num depoimento da atriz Whoopi Goldberg sobre quando ela os viu pela primeira vez no Ed Sullivan e sentiu como se pudesse tê-los como amigos. Quatro caras brancos. Mais tarde ela assistiu o histórico show no Shea Stadium.

“As pessoas me diziam: você pensa que pode ser branca? Você gosta desses sujeitos? Mas eu nunca pensei neles como uns caras brancos, eles eram os Beatles. Eles não tinham cor… Os Beatles me passaram a ideia de que todos eram bem vindos. Você não precisava ser o garoto mais chique da vizinhança, isso não importava, porque você podia ser um fã dos Beatles, e eu gostava disso. E de alguma maneira isso me girou até os dias de hoje e se tornou a minha própria pessoa. Posso parecer como quiser, posso ser do jeito que quiser e está tudo bem, isso eu obtive deles.” (Whoopi Goldberg)
 

Com a cantora pop soul Mary Wells em 1965. Fonte: Hulton Archive/Getty Image

 
Em 1964 haviam tumultos por todo sul do EUA por causa dos movimentos de direitos civis, nessa época os Beatles – na faixa dos 20 e poucos anos – estavam fazendo sua primeira tour pela América e ficaram sabendo que em um dos lugares que iriam se apresentar haveria segregação racial do púnico.

Numa coletiva de imprensa entre os shows, um jornalista questionou: O que acham deste comentário sobre integração racial nas apresentações?

“Nós não aprovamos que haja segregação ou coisa parecida, porque isso parece loucura. Seria estupidez separar as pessoas, porque é uma coisa realmente estúpida, não é? Você não pode tratar outros seres humanos como animais. É desta maneira que nós pensamos. É desta maneira que nós todos sentimos, e muitas pessoas na Inglaterra sentem o mesmo, jamais existe qualquer segregação nos (nossos) shows na Inglaterra e, se existisse, nós certamente não nos apresentaríamos neles.” (Paul McCartney)

Durante aquele verão, três militantes (negros) dos direitos civis no sul que estavam desaparecidos foram encontrados mortos. A historiadora Kitty Oliver relembra:

Continua depois da publicidade

“Eu tinha 15 anos, vivendo em meia à segregação. E era uma segregação provavelmente muito difícil para muita gente sequer imaginar. A única pessoa branca com quem eu eventualmente tinha algum contato era um vendedor que de vez em quando vinha à nossa comunidade. Quando ouvi que os Beatles viriam à cidade, a ocasião era então propícia para alguma coisa diferente.”

A cidade em questão é Jacksonville e todos os Beatles eram muito categóricos a respeito de Jacksonville, dizendo que se houvesse qualquer segregação, de qualquer espécie, eles não iriam tocar (isto estava em uma claúsula do contrato do show mostrada no documentário).

“Nós tocamos para pessoas, é o que fazemos. Nós não tocamos para aquelas pessoas, ou para estas pessoas, entende o que estou dizendo? Nós sempre tocamos para pessoas.” (Ringo Starr)

O jornalista Larry Kane, que acompanhava eles nessa tour, comenta: “Era surpreendente como aqueles quatro jovens rapazes percebiam o mundo e que tomassem essa atitude e reagissem a essa questão muito difícil e sensível sabendo que iriam irritar um sem número de americanos.”

Continua depois da publicidade

Paul McCartney, Larry Kane e John Lennon.

“Ao invés de adotar algum tipo de individualismo, seguimos por uma via mais forte, pela igualdade.” (John Lennon)

No fim eles fizeram o concerto em Jacksonville sem segregação na plateia e Kitty Oliver falou sobre:

“Foi o meu primeiro concerto em que fui sozinha. E a única alteração que senti na respiração foi quando ocupei meu lugar, e havia todas aquelas pessoas brancas ao meu redor. Ainda posso sentir aquilo até hoje. Lá estavam todas aquelas pessoas ao meu redor, mas me lembro também de estarmos todos juntos, de pé, e eu gritava tão alto como podia e cantava junto com todos. Foi a primeira vez em que percebi que era possível pessoas diferentes estarem juntas, reunidas, e enfim, que por um momento as diferenças pudessem desaparecer.”

Larry Kane concluiu: “E as pessoas que dirigiram o Gator Bowl (lugar onde ocorreu a apresentação em Jacksonville), pela primeira vez integrado, de um ponto de vista histórico e de estudo, acabaram com a segregação na maioria dos grandes estádios do sul.”

O famoso encontro com Muhammad Ali em 1964.

Um comentário pessoal, a maioria das pessoas que tenho a minha volta tem algum envolvimento direto ou indiretamente com arte, seja tocando numa banda, pintando, ilustrando, produzindo um zine, etc. Pra mim arte sempre teve dois pontos importantes: inspirar e questionar.

Ela toca as pessoas de várias formas. Às vezes uma frase dita num show pode pegar alguém que esteja timidamente lá no fundo a pensar em mudar algo em si ou ao seu redor. Eu mesmo só fui me tocar de coisas que me incomodavam e que não entendia bem através de músicas, livros, filmes. Tenho vários “heróis/heroínas” por ai.

Continua depois da publicidade

Num mundo doente, seja por desigualdades raciais, de gênero, intolerância religiosa, esse ódio gratuito às vezes escondido por uma tela de computador/celular, ou qualquer desses montes de chorumes que vemos por ai (e aqui na internet) fica esse relato histórico pra inspirar e repensar.

COLUNAS

Advertisement

Posts relacionados

Especiais

Quem acompanha o Blog n’ Roll há anos já sabe o que pensamos: o Rolling Stones é a maior banda de todos os tempos...

Publicidade

Copyright © 2024 - Todos os direitos reservados

Desenvolvimento: Fika Projetos