RICARDO AMARAL
Era 1988. Meu melhor amigo, César DiGiacomo me convida para fazer backing vocal no seu novo disco: Fairy Tales. Nossas vidas, até então estavam ligadas aos grandes momentos que nossas bandas haviam registrado. Frente Fria e Bisex eram as bandas. No entanto, ele… Johnny Hansen, o guru do desconhecido; o mestre dos sons obscuros e tristes. Dor, morte, guerra. Este era o universo melancólico do gênio intelectual que nos deixou há pouco, vítima da nenhuma atenção que dava ao seu corpo.
Subimos em meu Fiat Uno, eu e Richard. Nossa participação estava reservada para Soldiers, uma espécie de versão de Scotland The Brave, cuja harmonia nos leva ao clima dos highlanders no front da belicosa história britânica. Richard Telfer faz o típico Sargento de pelotão inglês. Aos berros, o Mad Sgte. dá ordens de comando entre uma estrofe e outra da belíssima Soldiers.
Fairy Tales é uma obra de arte que não pode ser ouvida no carro ou no iPod. Merece um mergulho espiritual num mundo que até hoje é incompreensível para o cenário pop. Hansen era tudo, menos pop.
Já a capa, uma foto de Araquém Alcântara que retrata o momento de resfriamento do Alto Forno na Cosipa, pode receber diversas interpretações. O extermínio, ou desinfecção de área alienígena; a escavação da superfície de outro planeta; ou seja, representa exatamente o conteúdo musical de Fairy Tales, um dos discos mais renomados do rock experimental brasileiro em todo o mundo.
O disco foi produzido por outro gênio: Roberto Verta, que discotecou no Heavy Metal, que de heavy metal não tinha nada. O nome da casa mais badalada de Santos, nos 1980, veio do desenho de ficção homônimo.
Verta dirigiu e produziu vários artistas enquanto executivo da BMG e depois RCA e foi convidado por Hansen para integrar a banda. Verta arriscava sons em keyboard e, para surpresa de Johnny , aceitou imediatamente o convite. Na época, tudo o que tinha era um Poli 800 (um arpejador) e um DX7. César tinha uma Rolland TR 505, uma batera eletrônica e algumas batidas programadas. Hansen queria mais.
Fairy Tales é um resultado das idéias de Hansen e da espetacular musicalidade de Richard Johnson, um outro mega intelectual a integrar a banda. Finalmente, Johnny Hansen encontrou o sequenciador que queria, pelas mãos de Marco Martolli. Que programou todas as idéias de Johhny e os sons de Johnson, dando vida ao Fairy Tales.
Harry, na verdade, existia já paralalelamente ao Bisex, formada por Denise (vocais), Johnny Hansen (guita), César (batera) e Grilo (baixo).
O Bisex estava pronto para ser a primeira banda de Santos a gravar um compacto, já tendo Magia rolando nas rádios atingindo os primeiros lugares.
Um acidente com uma brincadeira com uma arma vitimou Grilo e o sonho acabou para o Bisex. Hansen, que já não era apaixonado pela sonoridade da banda, decidiu levar o Harry (então Harry and the Addicts) adiante como projeto.
Em 1987, quando fui para Londres, levei uns vinte LPs do Harry na bagagem e passei dois dias de porta em porta nas rádios e gravadoras deixando um exemplar.
Na contra capa, uma etiqueta, dessas de caderninho escolar, trazia o nome e a direção de César DiGiacomo para contato. Como era bom sonhar com o impossível. Foi difícil e, por vezes, desagradável, mas entreguei todos, menos um, que guardo com carinho até hoje.
As influências de Joy Division, Felt e outras bandas underground criaram o mundo de Johnny Hansen.
Sky Will be Grey é o prelúdio do que Hansen e o Harry apresentariam dalí em diante.
As bagpipes de Soldiers introduzem os tiros de morteiros e uma linda e triste melodia retrata o que Hansen nunca vira, mas estudara como poucos: a Segunda Grande Guerra.
Na sequência Genebra, uma típica influência dos anos 80 e de Ultravox, com um nome de cidade, como Vienna, mas com o ritmo de Dancing With Tears in my Eyes.
Lycanthropia, uma viagem mística da criação fantasmagórica de Hansen. Licantropia é uma doença mental, na qual o paciente se imagina um lobo. A letra é um retrato das confusões cotidianas entre o real e o imaginário.
The Beast Inside (em minha opinião a melhor do disco) é punk Hansen. Apresenta, mais uma vez, a desorientação do personagem principal com seu lado cruel e mau. O solo de guitarra de Johnny é histórico. Uma sequência alucinada de pentatônicas Uma demonstração do gênio que era no seu instrumento: um dos maiores guitarristas que já pisou nessa ilhota.
Soldiers. Sem comentários. Toda vez que escuto me emociono.
Fairy Tales é um marco em minha vida e um marco no rock brasileiro. Harry, que trazia em sua formação original Johnny Hansen, Richard Johnson e César DiGiacomo, depois Roberto Verta nos teclados.
Hansen deixou um legado incrível de inspiração e genialidade. Não, Fairy Tales não é um disco qualquer; não é fácil de ouvir, mas uma criação única, sem precedentes. Não imita ninguém. É Harry!