Em setembro de 2014, falecia, após quatro anos de coma em decorrência de um AVC, Gustavo Cerati. Com apenas 55 anos de idade, o músico argentino, pouco conhecido no Brasil, deixava um legado na música sul-americana, sendo um dos maiores expoentes do rock alternativo e eletrônico na América Latina. Gustavo era o líder do Soda Stereo, mas foi com a carreira solo que se tornou um mártir em solo argentino. Nessa edição do Ruídos, o disco destacado será Colores Santos, de 1992, um projeto solo e futurista do hermano com seu amigo, Daniel Melero.
A década de 1990 foi recheada de gêneros e subgêneros que iam e vinham na mídia. Nos Estados Unidos e no mundo, a rebeldia grunge era o assunto principal. No Reino Unido, o shoegaze tentava se firmar de forma bem mais discreta, e os primeiros frutos do britpop iam surgindo. Entretanto, foi sob grande influência do dream pop que Cerati e Melero viraram as costas para grande parte dos modismos presentes na indústria, produzindo, assim, algo repleto de influências, mas que, em sua totalidade, não se parecia com nada do que já havia sido ouvido na Argentina e no mundo.
A faixa inicial, Vuelta Por El Universo (talvez a mais chiclete e repetitiva do disco), já é um resumo do tudo o que está por vir: sintetizadores ímpares, guitarras cheias de delay e uma atmosfera eletrônica que deixaria Brian Eno orgulhoso. Não é à toa que em vários momentos do disco fica nítida a influência de Achtung Baby, do U2, lançado um ano antes e produzido justamente por Eno. Os loops de bateria em contraponto com os sons ambientes servem para enfatizar essa constatação.
Seguindo essa mesma linha, Cozumel fomenta ainda mais a cara do trabalho, com vozes que parecem surgir do seu subconsciente quando ouvidas diretamente de um fone de ouvido. É daquelas canções que não precisam crescer pra ficar na sua cabeça. La Cuerda Planetária vai na onda, porém, com sonzinhos esquisitos e um vocal digno de Kraftwerk e New Order. Uma observação engraçada é que, à princípio, pode ser difícil para nós, brasileiros, identificar qual dos dois está cantando com aquele sotaque em determinadas músicas (é sério), mas isso não é realmente importante. Segue o álbum.
Embora o disco tenha suas inspirações em respingos de dream pop, o momento mais interessante do disco poderia facilmente fazer parte de Kid A, do Radiohead. Com um sample de bateria ininterrupto e um baixo claustrofóbico que cresce com o passar do tempo, Madre Tierra é uma ode à disco music, lembrando um pouco o clima de The National Anthem, além de apresentar elementos parecidos, como o uso de ruídos e orquestras desafinadas no ápice da canção. É o momento mais sombrio do disco e, ao mesmo tempo, o mais dançante, nos remetendo, também, aos rumos que a carreira de David Bowie tomaria ao decorrer dos anos 1990. Se os britânicos usaram os argentinos como inspiração, não há como saber. Talvez os argentinos só estivessem um pouquinho a frente do seu tempo. Segue abaixo a música do Radiohead e a dos nossos homenageados.
https://www.youtube.com/watch?v=twjurVgJ7sU
Outras grandes canções estão presentes no disco: Pudo Ser, com participação especial de Carola Bony, é um dueto sensual, instigante e misterioso. Tu Medicina é a mais Soda Stereo do trabalho. A faixa-título, por sua vez, encerra de forma magistral a obra, com guitarras distorcidas, porém sutis; reflexos do My Bloody Valentine e do shoegaze que aflorava na Europa.
No geral, o disco, com todo seu clima de que foi concebido por extraterrestres e instrumentos multidimensionais, é um olhar para o futuro dos anos 2000 diretamente de 1992, e merece ser ouvido com cautela. Ideal para quem gosta das bandas aqui citadas, principalmente Radiohead, New Order e My Bloody Valentine. Sim, tem no Youtube:
Aproveitando a deixa, recomendo, para quem se interessou e gostou do que ouviu, o disco Bocanada, do Gustavo Cerati. É uma continuação do que ele começou em Colores Santos, com as veias eletrônicas um pouco mais a mostra do que a viajeira pop vanguardista. Um bom fim de semana e até a próxima sexta-feira.