John Frusciante – Registros sombrios

John Frusciante – Registros sombrios

Uma ótima sexta-feira para você, internauta do Blog n’ Roll, que está sofrendo com o pós-feriadão ou, caso tenha a sorte de um vencedor, está usufruindo dos benefícios do ponto facultativo. O Ruídos de hoje será dedicado ao mártir vivo dos Red Hot Chili PeppersJohn Frusciante, e aos seus dois primeiros discos solo, Niandra Lades & Usually Just a T-shirt, de 1994, e Smile From The Streets You Hold, que fez 20 anos semana retrasada. Ambos os discos são tidos como obras obscuras, tanto pelo contexto em que foram criados quanto sua própria estética, e marcam um momento caótico da vida do guitarrista.

NIANDRA LADES & USUALLY JUST A T-SHIRT (1994)
Após abandonar repentinamente o Red Hot Chili Peppers na turnê mundial de Blood Sugar Sex Magik, Frusciante entrou numa espiral em direção ao fundo do poço. Como carro-chefe do desastre, o seu vício em heroína o colocava como grande candidato a bater as botas. Para deteriorar o quadro, o músico perdeu todas as suas coisas num incêndio e ainda carregou a culpa pela morte de um de seus melhores amigos, o ator promissor River Phoenix (morto por overdose).

Morava num apartamento minúsculo (que fedia bastante, segundo relatos) e se alimentava apenas de comidas enlatadas. Seu nome passou a ser sinônimo de morte para os moradores vizinhos. Em meio a essa sombra que permeava seu corpo e alma, o próprio artista não botava fé na sua durabilidade, e lançou, com certa urgência, um disco testamento com 25 canções (13 delas sem título), o que, talvez, seja o maior símbolo e registro da situação que o artista se encontrava.

O álbum foi registrado num gravador de fitas cassete entre 1990 e 1994, o que da todo um ar lo-fi às canções e contribui pra síntese escrachada de fundo do poço. O resultado, a princípio, pode chocar e assustar: os vocais são, muitas vezes, berrados e desafinados, e a qualidade de som, obviamente, não é das mais favoráveis quando se está habituado a superproduções musicais. A primeira parte, Niandra Lades (onde as músicas ainda tem título), ainda é um tanto mais acessível que a segunda, com canções que, se gravadas numa qualidade melhor, talvez tivessem alguma oportunidade de visibilidade. Dito tudo isso, você pode pensar em nem chegar perto de ouvir essa bagunça, mas você não deve fazer isso, e eu vou dizer o porquê.

Niandra Lades tem um peso gigantesco justamente pela sua carga histórica e biográfica, e quando isso é assimilado da forma correta, o disco, talvez, seja uma das coisas mais lindas das quais já se teve registro. Tendo como base toda a estética sonora do trabalho, a atmosfera perturbadora é apenas um quê a mais quando perto de todas as influências e ideias jogadas de forma despretensiosa. As músicas não seguem um padrão ordenado, não tem do-ré-mi-fá, não é verso-ponte-refrão, não tem previsibilidade. Elas seguem seu fluxo próprio, e cabe a você buscar entender esse fluxo. É como assistir Império dos Sonhos: um sentimento surrealista que talvez precise ser sentido ao invés de entendido. E quando você sente isso, é como se você viajasse pela cabeça de Frusciante, entendendo suas ideias, medos, delírios e fantasmas. As canções do disco estão organizadas de ordem cronológica, o que passa a ser ainda mais instigante, pois é possível sentir o declínio pessoal cada vez mais evidente do artista.

Mas o álbum não se limita apenas a sensações e metáforas. Tecnicamente falando, John Frusciante nunca foi fraco, e seria um absurdo não dar ênfase na qualidade das composições e de suas jogadas guitarrísticas. As influências de Jimi Hendrix e do rock psicodélico dos anos 1960 nunca foram tão fortes em nenhum outro momento da carreira do guitarrista, e quando misturadas com o tom de vanguarda e experimentalismo, geram canções poderosas. A conversa entre guitarra e sintetizador presente na introdução de Untitled #11, o jogo de guitarras duplicadas em Untitled #6 e #7 (que são a mesma música, porém em uma rotação diferente), a melancolia presente em Curtains, o futurismo de Running Away Into You e o cover visceral de Big Takeover, do Bad Brains, são algumas das provas de que, embora sob a influência de entorpecentes, a capacidade musical de John Frusciante nunca esteve tão forte quanto nesse compacto.

SMILE FROM THE STREETS YOU HOLD (1997)

À essa altura, a situação do artista era ainda mais crítica do que a descrita no tópico anterior. Em decorrência da heroína, seus dentes tiveram de ser retirados, sua tatuagem desapareceu e seu corpo encontrava-se cheio de cicatrizes. Em questões financeiras, seu orçamento não era suficiente nem para sustentar seu próprio vício, muito menos pra se alimentar decentemente. Foi com o propósito de conseguir dinheiro que Smile From The Streets You Hold veio à tona, e diferente do primeiro disco, o resultado não é dos melhores.

Dessa vez, Frusciante parece não ter mais tanta preocupação com a qualidade das canções. Muitas delas são apenas um amontoado de gritaria e ruídos que, tecnicamente, não querem dizer nada e soam como encheção de linguiça. Se no disco antecessor sua capacidade musical ainda era incontestada, aqui ela é discutível, e pouquíssimas vezes eficiente. Mas vale a ouvida pela experiência semi-junkie que você terá.

Pra não dizer que não falei das flores, algumas boas faixas escolhidas a dedo podem ajudar a melhorar a experiência: as músicas Height Down e Well I’ve Been, com River Phoenix (gravadas pouco antes da morte do ator), são o ponto alto do disco ao lado da balada I’m Always. À princípio, ambas seriam lançadas no trabalho anterior, mas o baque da morte do ator foi tamanha que o guitarrista resolveu deixar na gaveta. A faixa A Fall Thru The Ground também é um momento memorável com um ar progressivo que lembra os anos áureos do Pink Floyd. Todavia, levando em conta quase todo o resto, o disco serve apenas para engrandecer ainda mais o trabalho de Frusciante em Niandra Lades. Segue abaixo o anexo das melhores faixas do disco:

Após isso, Frusciante iniciaria o tratamento contra a heroína, no mesmo ano. No ano seguinte, voltaria limpo ao Red Hot Chili Peppers. Californication, primeiro disco da banda californiana após o retorno do guitarrista, foi um sucesso comercial e um dos discos mais vendidos de todos os tempos. O resto já virou história.