VINICIUS HOLANDA
Disco de estreia de um jovem recifense que venceu um reality show, mudou-se para a República Independente da Bossa Nova, fez um mestrado acadêmico decididamente irrelevante, teve seu instável talento para comédia contratado pela indústria do sitcom e usou todo o dinheiro que ganhou até aqui para gravar nove canções. Entendeu?
O portfólio acima é – acredite – o título do provável melhor álbum de MPB que você não ouviu em 2018. Tudo bem, ainda há tempo: o pernambucano Matheus Torreão está começando a trabalhar seu disco de estreia, recém-lançado.
Quem se aventurar pelo punhado de faixas do trabalho vai se deparar com uma variedade de estilos: há latinidades (Vou Embora Para o México), ritmos nordestinos (Baião do Apocalipse), samba (Muriçócrates) e até canção com inspiração em musicais da Broadway (My Roommate is Away).
“Sou instrumentista diletante, amador mesmo. A canção é uma linguagem que se aprende a falar. Para mim, tudo passa antes pela letra, a ideia que quero passar. Só depois chego ao ‘como’ quer dizer”, explica o cantor. “Talvez por não ter formação musical, acabo pensando no final o estilo com que quero vestir essa ideia”.
As letras, por sinal, são um dos pontos fortes do artista. A mistura de lirismo com irreverência, humor e ironia o aproxima de compositores como Zeca Baleiro e Chico César. Os versos de Meu Caro Amigo (Meu caro amigo/ Eu não te contei/ Minha Experiência gay/ Eu fui tão bobo/ Eu me apavorei/ Com minha experiência gay), Estrela Pornô (Vergonhas tão poucas/ As caras e bocas/ As taras mais loucas / Não são pra qualquer amateur) e Vou Embora Para o México (Membros do júri/ Já entendi/ Minhas canções/ Ficam melhores sem mim/ E aos jornalistas/ Peço perdão/ O tempo todo vocês tinham razão).
“É espontâneo. Uma forma de tratar de temas às vezes espinhosos sob uma perspectiva diferente”, diz o autor, sobre a verve irônica. “Numa analogia gastronômica, é como um molho sobre o básico: apimenta aqui, tempera dali”.
Garoto de Programa
Torreão começou a carreira com a banda A Caravana do Delírio, com quem gravou os EPs Glamourosa Comédia Pop (2009) e Delirium Tremens (2011). O divisor de águas na trajetória foi a participação – e vitória – no reality show musical Geléia do Rock, exibido no Multishow, em 2010.
Foi quando ele se mudou de mala e cuia para o Rio de Janeiro e gravou um compacto, em 2016, à frente da banda Exército de Bebês, com as músicas Adeus Meu Rock ‘n’ Roll e Frevo da Aposentadoria.
Nesse meio tempo, o recifense começou a trabalhar como roteirista – escreveu os episódios de Mister Brau, exibido pela Rede Globo. Talvez isso explique o aspecto visual de boa parte das letras. “Sem dúvidas, deve ter relação. O roteiro estimula a fazer esse exercício de imaginação”.
Torreão foi parceiro da cantora e humorista Clarice Falcão no Especial de Ano Todo, da Netflix. Sua composição Problema Meu acabou virando nome do segundo álbum da conterrânea. “Uma delícia trabalhar com ela”.
O final do título de seu disco diz que o cantor “usou todo o dinheiro que ganhou até aqui para gravar nove canções”. “Sobraram até mais dívidas (risos). Mas valeu muito a pena”.