RICARDO AMARAL
Era Natal. 1971 ou 1972, sei lá. Estávamos numa cidadezinha no interior chamada Tupi Paulista. Vovô havia sido transferido para gerenciar uma máquina de café e, para as férias daquele verão, e muitos outros, seguimentos, nos três, os “amacres” de Dna. Ondina Amaral, esta mulher dificilmente maravilhosa.
Na verdade “o meu amacre” era meu irmão mais velho: Régis. Um menino obediente e medroso; lindo e bem comportado, longe de representar a ameaça punitiva que vinha da alcunha, cuja a etimologia nasceu de “Meu malcriado ”, ou seja, “amacrinhado”; “amacre”.
Eu, três anos mais novo, no diminutivo de meu irmão, virei “Amacrinho”. O Toco, Rogério o caçula, nascido no dia de reis dois anos depois de mim, o “Corregue”. Me mata a saudade e a nostalgia de nossa infância naquele lugar. Não me lembro de momentos tão felizes e de pureza quase selvagem.
Naquele ano resolvi desafiar minha angústia racional e destruir, ou eternizar, minha crença em Papai Noel. Eu queria um autônoma Fittipaldi, uma pista em oito com passagem de elevado uma por sobre a outra. Vinham dois carrinhos: a Lotus preta John Player Special de Emerson e a Brabham de Wilsinho. Lógico, eu me achava merecedor.
Era um ótimo aluno, embora um filho realmente “amacrinhado”, teimoso e impossivelmente ‘levado’. Pobre mamãe…
Minha genialidade já resolvera o problema: ninguém iria saber o meu pedido. A carta? Só na véspera antes de dormir. Mas meu desafio foi dividido com quem eu confiava tudo que pensava e fazia: vovô Gilberto. Vovô era a pessoa que eu mais confiara na vida. Vovó serviria de mensageira, ou meus irmãos, caso fossem papai e mamãe a trazer o presente. Não havia criança mais sonhadora do que eu.
Assim, quando acordei naquela manhã quente de Natal, saltei do beliche e corri para a árvore, que ficava na sala, na frente da casa, onde havia uma varandinha, e a estrada por onde passavam os ônibus da Viação Prata, que tinha (e tem) um cachorro Greyhound vermelho. Era o ônibus que trazia todos.
Lá estava o autorama! Incrível! Papai Noel existia enfim! Por sob a caixa já aberta, um disco! Papai, aflito por não saber o que me dar, me deu um LP do meu ‘Beatle’. Meu herói, meu ídolo de infância: Roberto Carlos. Vovô tratou de alimentar meu credo no Bom velhinho. Vovô Gilberto não existia. Ele era uma lenda. O homem mais incrível de que minha memória tem lembrança.
O disco? Roberto Carlos 1971. Um dos maiores e mais importantes discos da história da música popular brasileira.
Trazendo a eterna obra prima de Erasmo Carlos Detalhes, um hino ao romantismo dos jovens de minha geração. DETALHES é uma delicadeza; o Yesterday brasileiro.
https://www.youtube.com/watch?v=g2JTFXwwqcQ&feature=youtu.be
https://www.youtube.com/watch?v=SRvbS7pP7F4
Sua estrutura melódica foi toda baseada em Here Comes The Sun, de George Harrison, e possui um lirismo poético único. É uma declaração de amor de um rebelde cabeludo. Era eu.
Roberto era meu maior ídolo. Sim, muito maior que os Beatles para mim, na época. Este álbum homônimo de 1971 é um dos grandes catalisadores, para o bem e para o mal, das diversas características de Roberto Carlos. Há nele, ainda, algo do legado da Jovem Guarda, em especial nas composições de Renato Barros e Getúlio Côrtes, Você Não Sabe o Que Vai Perder e Eu Só Tenho um Caminho, dois bons momentos regados a blues e rock.
O romantismo marca presença especialmente pelas composições de Roberto e do parceiro Erasmo Carlos, todas, para usar um clichê, hits inesquecíveis. A dupla também compôs o hino pacifista Todos Estão Surdos e, em homenagem a Caetano Veloso, a famigerada Debaixo dos Caracóis de Seus Cabelos.
https://www.youtube.com/watch?v=U_i1d-qMkW8&feature=youtu.be
O compositor baiano também é laureado com a pungente interpretação de Roberto para a sua Como Dois e Dois, um belíssimo exercício blue-eyed soul – ouso dizer – só superado por gravações anteriores de The Young Rascals e The Box Tops e posteriormente pelos Stones no álbum Exile on Main St, especialmente na faixa Let it Loose.
A cafonice se faz presente nas faixas Traumas e A Namorada, esta de autoria de Carlos Colla, aquele mesmo que se notabilizaria fazendo, entre outras cositas popularescas, versões em português para músicas de Julio Iglesias.
Também há neste importante trabalho um pouco de vaudeville (I Love You), uma original do “versionista” Fred Jorge (Se Eu Partir), há o indefectível “órgão nostálgico” mezzo-igreja mezzo-churrascaria (Amada, Amante) e há clássicos do quilate de Detalhes, de que já tratamos.
https://www.youtube.com/watch?v=xJm7DFhebqA&feature=youtu.be
De tanto amor é marcante em minha vida. Trilha sonora do longa metragem Roberto Carlos a 300km por hora, a cena dele vendo a hiponga bacana entrando no avião em Congonhas é antológica. Para mim, tudo era uma bênção. O nome de Roberto no filme era Lalo, meu apelido familiar até hoje, dado-me por minha tia Cida, que dedicava horas a brincar conosco. Lalo era na verdade Sr. LAURO, dono da pequena farmácia que ficava debaixo do predinho onde moravam vovó e vovô na Floriano Peixoto. Cida me deu o apelido e todo o amor que havia. Naquele Natal, no Tupi Paulista, tudo foi-me mágico.