Diga: O silêncio dito e o grito calado, uma análise em três atos da trilogia da Fresno

Entre versos sussurrados e guitarras que cortam o silêncio, a Fresno construiu uma trajetória marcada pelo peso do tempo e pela arte de transformar sentimentos em som. Surgida em Porto Alegre no final dos anos 90, a banda – formada por Lucas Silveira, Vavo Mantovani e Thiago Guerra – atravessou gerações explorando a melancolia, o caos e a resiliência emocional em letras que funcionam como confissões abertas. Na trilogia Diga – Parte 1, Parte 2 e Parte Final –, lançada no álbum Eu nunca fui embora (2024), a Fresno leva essa narrativa a um novo patamar. O que poderia ser apenas um relato sobre o fim de um relacionamento se desdobra em três atos carregados de luto, aceitação e reconstrução. Uma história que não se encerra em palavras, mas se estende e ocupa o espaço entre o que se diz e o que se cala. A produção instrumental da trilogia é uma narrativa por si só, em que dedilhados suaves ao piano tecem o lamento inicial, enquanto explosões de guitarras distorcidas irrompem como gritos de revolta e desespero. Essa variação sonora é mais do que um pano de fundo: é o reflexo visceral dos altos e baixos emocionais do eu-lírico, um espelho das paisagens internas que ele atravessa. As participações pontuais surgem como vozes externas, ora como apoio, ora como confronto, intensificando o peso narrativo de cada instante. Cada capítulo dessa saga musical é como um fragmento de um espelho estilhaçado, onde as peças se encaixam apenas para mostrar uma visão incompleta, mas profundamente verdadeira, da dor e do luto. É aqui que o trabalho de escuta, tal como delineado por Cristian Dunker em O Palhaço e o Psicanalista, assume o protagonismo: escutar não é apenas um ato voltado ao outro, mas uma tarefa árdua de voltar-se para si, para o que ecoa nas cavernas mais profundas da alma. Essa escuta interna, que fere e transforma, guia o ouvinte por uma jornada intensa, onde súplicas, revoltas e aceitação coexistem como camadas de uma mesma experiência emocional. Tudo isso pulsa em consonância com as teorias freudianas sobre o luto, revelando que elaborar um trauma é um ato tanto de dor quanto de criação. Considerando que o imperativo Diga nomeia todas as partes da trilogia, será que esse que ordena banca esse lugar da escuta? Será que existem ferramentas para elaboração do que será dito? A escuta e a subjetividade: ecos de Dunker e Freud Em O Palhaço e o Psicanalista, Christian Dunker nos convida a perceber a escuta como algo que ultrapassa o simples ato de ouvir, pois implica ser atravessado pelo outro e permitir que palavras e silêncios reverberem na própria subjetividade. Seguindo essa lógica, a trilogia Diga, da Fresno, não apenas explora essa dimensão da escuta, mas também a ressignifica ao transformá-la em uma experiência musical que exige atenção plena e imersão emocional. Se a psicanálise selvagem desafia os limites da escuta analítica, poderíamos considerar essa uma forma de escuta selvagem, na qual som e significado se entrelaçam de maneira visceral? Aqui, escutar não se resume a acolher o outro, mas também exige um confronto direto com as próprias camadas, que se revelam fragmentadas, contraditórias e, por vezes, dolorosas. Freud, em Luto e Melancolia, argumenta que o luto não se encerra na mera aceitação da perda, pois demanda um trabalho ativo de desapego, no qual as pulsões, antes concentradas no objeto perdido, precisam ser deslocadas para que o sujeito possa reconstruir-se. Da mesma forma, Dunker, ao ampliar essa perspectiva, aponta que o luto também é atravessado pela escuta das vozes internas — aquelas que carregam as dores indizíveis e as verdades mais difíceis de encarar. Diga propõe uma jornada que oscila entre a dor da ausência e a necessidade de reorganizar os próprios afetos, criando, assim, um espaço onde a escuta se torna tão essencial quanto a própria enunciação. Em Diga Parte 1, essa escuta aparece como um apelo dilacerante, um grito contido que oscila entre súplica e resignação. O eu-lírico ainda está preso ao sonho, ao desejo de reconexão. Esse momento é marcado pela melancolia que Freud descreve como a fase inicial do luto: a negação da perda e a tentativa de preservar o objeto ausente no campo das memórias. Os dedilhados suaves e o piano que chora ao fundo intensificam a sensação de vazio, enquanto a voz fragilizada de Lucas ecoa como um lamento que encontra alento apenas no onírico. Diga Parte 2 já é outro cenário. A melancolia dá lugar à raiva, e o eu-lírico, que antes pedia, agora confronta. As memórias, que outrora traziam um certo consolo, tornam-se espinhos. É a fase da revolta, em que o objeto perdido não é mais idealizado, mas encarado com rancor. A música acompanha essa mudança com guitarras distorcidas e vocais incisivos, criando uma atmosfera de confronto e desgaste. Dunker diria que é aqui que a escuta se torna mais turbulenta, pois ouvir a si mesmo nesse momento é como olhar um espelho rachado — nada parece inteiro, tudo provoca. Já Diga Parte Final apresenta um ponto de ruptura definitivo. A voz feminina que surge é incisiva, cortante, quase um julgamento. Não há mais espaço para pedidos ou reconciliações. A negação, que antes era do luto, agora é do retorno. A voz feminina, ao dizer “você não vai mudar”, é o eco de um eu-lírico que finalmente se despede — não com a paz serena que se espera da aceitação, mas com o grito de uma liberdade que se conquista com dor. Aqui, Freud e Dunker se encontram: o que não é dito, o silêncio carregado, fala mais alto que qualquer palavra. A trilogia Diga não apenas narra um término; ela vive o luto. Cada etapa, cada acorde, cada pausa, reflete as nuances de um processo que é tão universal quanto íntimo. A escuta, como sugere Dunker, é o fio condutor: escutar o outro, escutar as memórias, escutar os silêncios. É um trabalho que dilacera, mas que também transforma. E assim, como em Freud, a dor da perda