Uma menina de cabelos azuis e gosto excêntrico por roupas coloridas chega à uma cidade monótona e cinza. Não satisfeita com o que vê, busca no vilarejo alternativas para acabar com o tédio.
Esta é a premissa de Coraline e o Mundo Secreto (2009). Lançado há mais de dez anos, é até hoje um dos maiores sucessos do gênero fantasia e animação em stop-motion do mundo.
O que muita gente não sabe é que o filme baseado no livro homônimo, escrito por Neil Gaiman, esconde mais mistérios do que possamos imaginar.
Hoje vamos desbravar cada porta, janela, buraco e personagem da obra do cineasta norte americano Henry Selick, mesmo diretor de O Estranho Mundo de Jack (1993).
A vida cinzenta de Coraline
O filme começa com uma cena emblemática, embora a trilha sonora enigmática seja animada. De uma janela aberta, podemos ver uma boneca girar até chegar à mãos pontiagudas, formada por agulhas.
Aos poucos, o objeto é aberto e transformado numa nova versão. Desta vez, uma menina de cabelo curto vestida com um sobretudo amarelo.
Voltando a vida real – quer dizer, dá para diferenciar o imaterial neste filme? -, um caminhão de mudança chega até um casarão chamado Palácio Cor de Rosa, localizado longe do centro da cidade.
O imóvel abriga mais três moradores, o senhor Bobinsky (Ian McShane), e as amigas Spink e Forcible (Jennifer Saunders e Dawn French). Os pais (Teri Hatcher e John Hodgman) da curiosa Coraline Jones (Dakota Fanning) são escritores e nem dão bola para a filha, que implora por atenção. Para que ela os deixe em paz, sugerem que ela faça um “tour” pela casa e vizinhança.
Nos arredores do jardim, enquanto procura um poço, é surpreendida por um garoto da mesma idade, chamado Wybie Lovat (Robert Bailey Jr.). Dias depois, ele a entrega uma boneca idêntica à jovem. Com isso, a nova amiga começa a acompanhá-la nesta aventura.
Sonho ou pesadelo?
Em casa, os dias de Coraline não são fáceis. A comida do jantar não é boa, as amizades estão longe e não há nada que ela goste por ali. No entanto, durante uma avaliação crítica do casarão, encontra uma pequenina porta trancada. Claramente ela não a deixaria fechada por muito tempo.
Por causa da grande insistência da menina, a mãe abre a porta e as duas se deparam com uma passagem, que um dia existira, mas no momento está fechada por blocos de concreto. Assim, não resta nada a fazer, a não ser dormir e esperar que os demorados dias passem logo.
Ao ser acordada por camundongos uma noite, Coraline é levada pela abelhudice até a porta. Entretanto, desta vez a porta está aberta,abrindo uma longa passagem em tons violeta e azul. Aventureira do jeito que é, caminha pelo apertado espaço até chegar ao outro lado.
Porém, não encontra nada menos do que sua própria residência. Mas de uma maneira bem diferente! Tudo parece ser mais alegre e divertido, até mesmo seus “outros” pais. Isso porque Coraline descobre que possui outra mãe e pai. Esses, na porta misteriosa, são mais atenciosos, carinhosos, alegres e prestativos do que os biológicos.
No meio deste sonho quase encantado só existe uma coisa diferente: os olhos. No lugar deles, todos os habitantes do outro mundo possuem botões.
Os olhos de botões
O local utópico atrai a atenção da jovem, que vira e mexe vai visitá-lo. Contudo, o carinho desses novos pais começa a se transformar em pesadelo! Afinal, querem que Coraline costure botões nos olhos, e viva para toda a eternidade no casarão alternativo.
– Você poderia ficar aqui pra sempre, se quisesse.
– É mesmo?
Continua depois da publicidade– Claro! A gente vai cantar e brincar. E a sua mãe vai fazer seus pratos prediletos. Só tem uma coisinha de nada que precisa fazer.
– O quê?
– É uma surpresa!” Diálogo de Coraline e o Mundo Secreto (2009)
O lado bom é que a jovem percebe as mensagens subliminares do lugar. Tudo parece perfeito demais; o que garantiria que este mundo seria assim para sempre? A dificuldade é saber que embora diga não para a proposta dos olhos de botões, os novos pais não aceitariam a resposta.
As ações aparentam ser em vão, dado que o mundo encantado não é tão imaterial quanto ela imaginava. Dormir e almejar que este pesadelo acabe não é suficiente, pois já faz parte do que sonhara um dia. Até porque, dentro de si, pedia começar uma nova vida – e sabe muito bem disso.
Quem são e como sabiam da infelicidade de Coraline?
Quando não havia mais nada a esconder, a outra mãe assumiu sua verdadeira forma, parecida com um aracnídeo. Ela é a cabeça de todo o sistema, que apesar de ser encantado, foi idealizado justamente para agradar integralmente suas novas presas: as crianças.
Coraline seria a quarta vítima, já que as outras teriam se rendido aos encantos e costurado botões no lugar dos olhos, tendo suas almas aprisionadas no outro mundo.
Através de bonecas feitas a partir da fisionomia das crianças, a outra mãe espia a infelicidade. Tudo indica que as outras presas viveram no casarão onde mora Coraline.
A mãe dos olhos de vidro
Teorias apontam que o filme foi baseado no conto A Outra Mãe, escrito na época vitoriana pela jornalista britânica Lucy Clifford.
A história fala sobre duas irmãs, Olhos Azuis e Turquia, que viviam numa modesta casa perto da floresta. Apesar de serem felizes morando com a mãe, certo dia no caminho de volta à casa encontraram uma mulher que despertou a curiosidade e rebeldia das jovens.
Esta figura disse ter nas mãos uma caixa onde viviam um pequeno casal. A mulher só poderia mostrar os minúsculos cidadãos caso elas fossem malcriadas em casa.
Porém, a mãe das irmãs às alertou que se elas fossem birrentas, as abandonaria. E em seu lugar, uma outra mãe com olhos de vidro aparecia para cuidar delas.
No final deste conto, as crianças são abandonadas pela mãe biológica e fogem para o bosque. Porém, sua nova figura materna é uma mulher com longos braços e olhos de vidro.
“E a nova mãe permanece na pequena cabana, mas as janelas e as portas estão fechadas e ninguém sabe como é lá dentro. Vez ou outra, depois que escurece e quando a noite está quieta, Olhos Azuis e Turquia se achegam de mãos dadas, pé ante pé, à casa em que um dia foram tão felizes e, com o coração palpitando, observam e ouvem; às vezes, um clarão ofuscante atravessa a janela e sabem que é a luz dos olhos de vidro da nova mãe; ou escutam um estranho som abafado e sabem que é o barulho de seu rabo de madeira arrastando nas tábuas do chão.” Trecho do conto A Outra Mãe, de Lucy Clifford.
O longa Coraline pode ter algumas semelhanças com o conto. Todavia, o final da protagonista é diferente. O rumo dos personagens leva a reflexão de que a insatisfação de si mesmo gera mudanças que só podem ser valorizadas quando se é tarde demais. A astúcia e rebeldia, neste caso, são a salvação da personagem
Ficou interessado em ler o conto? Você pode conferi-lo na íntegra neste link.