Se você se surpreendeu com o filme coreano Parasita (2019), certamente não conhece Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. O longa retrata a vida de milhares de brasileiras ao mostrar o cotidiano de Val, uma empregada doméstica da grande São Paulo.

Caso você seja uma pessoa sensível, cuidado com o emocional, pois o filme capta ações, diálogos e comportamentos característicos brasileiros. Demonstrando, assim, o quanto o país é segregacionista com uma ideia de união nacional.

Em virtude disto, é possível que algumas cenas tenham acontecido na sua casa. Ou quem sabe, os personagens desta história sejam pessoas próximas à você?!

Lançado em 2015, em período pós-eleitoral, o longa proporciona discutir sobre a percepção de um país dividido e polarizado. Principalmente, na diferença entre Sudeste e Nordeste. Com quase 2 horas de duração, o público se envolve na história, de comédia e drama.

Reflexão de Que Horas Ela Volta?

A narrativa começa com uma perfeita reflexão que faz juz ao nome do filme. Vinda de Recife, Val (Regina Casé) mora há mais de uma década em São Paulo, na casa de Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), os patrões. Uma de suas principais tarefas é cuidar de Fabinho (Michel Joelsas), o filho do casal. Ela o cria com cuidado e amor, porém, o menino constantemente pergunta sobre a mãe que está no trabalho. “Val, que horas ela volta?”.

Do outro lado do país, a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), é criada por  parentes e também se questiona sobre a chegada da mãe. Afinal, ela precisou se mudar a São Paulo na busca por trabalho.

Naquela mansão da classe média, a empregada doméstica é quase “da família”. Contudo, ainda vive de forma segregada, dormindo no quarto dos fundos, comendo em mesa separada e mal tendo atenção dos patrões, quando se é preciso ter uma conversa.

Após Fabinho crescer e entrar na adolescência, a preocupação da vez é com o vestibular. Com uma vida mais “tranquila”, a empregada pode aproveitar as horas “fora do trabalho” para assistir filmes ou até mesmo conversar com outros funcionários da mansão. Esta serenidade, por sua vez, acaba quando recebe uma ligação inesperada de Jéssica.

Reviravolta

A filha decide prestar vestibular em uma das  universidades mais concorridas de São Paulo, a mesma que Fabinho também pretende estudar.  Por isso, precisa de um tempo para se preparar. Embora a visita faça os olhos de Val se encherem de alegria, os donos da casa começam a demonstrar cada vez mais sintomas de incômodo com a vinda da jovem. Isso porque, a empregada mora com os patrões, e consequentemente, a filha também deveria morar – por mais que seja num breve período.

É notável a diferença de vida, linguagem, preocupação, cenários, gostos, figurinos, trejeitos, e prazeres, entre os habitantes daquele imóvel. Enquanto Carlos aparenta ser um homem depois dos cinquenta que agora tem dinheiro e investe em quadros, Bárbara é uma socialite do Morumbi que adora festas, entrevistas e status. O filho do casal, mostra ser um adolescente amoroso no processo de descoberta e aprendizagem na vida.

 Do outro lado da casa temos Val, uma mulher “sucedida” entre a família, que envia dinheiro aos parentes que criaram Jéssica em Recife. A menina, agora mulher, quer ganhar mais e ser arquiteta e urbanista. E nesta história todos embarcam, cada um com suas próprias frustrações e limites.

Jéssica chega como filha da empregada, porém, não se contenta em ser tratada como a mãe. Até porque, ela está ali como hóspede… Mesmo que não tenha sido convidada. As afrontas, por mais que sejam pequenas narrativamente, acabam se tornando enormes conflitos entre empregado e empregador.

A jovem, começa as poucos a ocupar espaço naquela casal. E autonomia demais incomoda, e claro, não pode.

Choque de realidade

Certa noite, Val recebe em seu quarto a visita de Fabinho. O jovem angustiado com a pressão pela prova da universidade, deita no colo da empregada e, adormece. Na manhã seguinte, Bárbara acorda e não encontra a mesa servida. Procura a empregada por todos os lugares, mas não encontra ninguém. De nariz virado – como quem nunca fez isso na vida – prepara um suco.

Em instantes, Jéssica chega na cozinha, após acordar. Bárbara, de mal gosto, mostra sua hospitalidade oferecendo alimentos para o café da manhã. A jovem aceita. Não demora muito para Val acordar com os cabelos embaraços e correr em direção a chefe, pedindo desculpas por ter dormido demais, e se prontificando a oferecer todo tipo de ajuda e auxílio necessário. Bárbara finge que está tudo bem e sai da sala contando: “sua filha adorou a geleia”.

Óbvio que nada está bem e aquela geleia não era para o consumo de Jéssica. A anfitriã da casa está incomodada por se sentir cada vez menos “dona” daquele espaço. Aborrecida e frustrada, Val quase tira a força a própria filha da mesa.

Onde é que já se viu, filha de empregada sentar na mesa dos patrões? 

Eles não são meus patrões não, Val.

Diálogo do filme

Sem poder se alimentar direito, Jéssica se retira do ambiente. Com cara de sono, Fabinho chega na cozinha e senta na mesma cadeira em que a filha da empregada estava. Agora, o comportamento de Val muda completamente.  Neste momento, o tom de sua voz é de atenção, amor, preocupação e carinho.

Esta cena mostra de forma impactante uma série de conflitos e sentimentos daqueles personagens. Todos estão no limite, e a linha desta demarcação está gritando. Aos poucos, não dá mais para jogar os sapos engolidos debaixo do tapete.

A desconstrução das atrizes para o papel

A atuação de Regina Casé é impecável. A atriz deixa de lado os saltos e assume uma mulher com mais de 40 anos, moradora de uma comunidade de São Paulo, que a cada dia fica mais lenta por assumir determinada função por mais de 10 anos.

Camila Márdila também tem uma atuação indescritível, exibindo expressões duras, sarcásticas e estratégicas durante a narrativa. O casal formado por Karine Teles e Lourenço Mutarelli consegue ser ao mesmo tempo descolado e megero.

A cineasta Anna Muylart deixa vários objetos símbolos durante o filme. No final, todas as peças se encaixam, e você percebe que na verdade, não existe lugar mais seguro do que aquele que chamamos de casa própria. O imóvel, no que lhe concerne, é o sonho de milhões de brasileiros nascidos sem heranças, pensões e privilégios. Ou seja, o filme é um combate direto entre a classe média e baixa, com problemas e pormenores do século vinte.

Poucos filmes do gênero comédia conseguem ter uma qualidade e profundidade tão imensa e intensa.  E este, com certeza é! Em resumo, muitas pessoas veem a vida representada na tela do cinema. Isso mostra o quanto o Brasil é complexo, e o abuso no ambiente de trabalho existe e se manifesta mais do que possamos imaginar.

Depois de cinco anos, Que Horas Ela Volta? ainda é um filme essencial e representativo para o cenário do país. Digamos até que necessário. Em  tempos de pandemia, como essa que em que vivemos da Covid-19, é que a diferença de classes se mostra gritante.

Quem pode ficar em casa, fica. Quem não pode, sai de um estado, deixa os filhos com terceiros e cuida de crianças de desconhecidos por dinheiro. No meio da viagem, não podemos esquecer de um ônibus lotado e uma quentinha na bolsa.