Em 1998, o cenário punk e hardcore nacional vivia um momento especial. Em todos os cantos, bandas novas brotavam. Foi assim em São Paulo, no Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, Curitiba, Campinas, Jundiaí, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza, entre tantas outras cidades.
São Paulo, com nomes marcantes como Holly Tree, Street Bulldogs, Blind Pigs, Dance of Days, Hateen, Gritando HC e CPM 22, concentrava boa parte dessa safra. Na Baixada Santista não era diferente, com Turn Away, D-Cups, Punk Hyenas, The Bombers e Imperpheitos.
Com o surgimento do Hangar 110, na Rua Rodolfo Miranda, 110, todas essas bandas passaram a ter um local emblemático na Capital. Tocar na casa era uma conquista para as mais novas e o palco principal para quem já contava com um público maior.
Foi nessa casa no bairro do Bom Retiro que grandes nomes do punk e hardcore internacional se apresentaram. Como esquecer dos shows do The Queers, New York Dolls e Stiff Little Fingers?
Mas a história do Hangar 110 está com os dias contados. No próximo dia 23, o CPM 22, um dos nomes que mais vezes passou por lá e foi o responsável pelo primeiro show do espaço, em outubro de 1998, fará duas apresentações para marcar o encerramento das atividades da casa. Não há mais ingressos para a data.
“O Hangar 110 é o nosso CBGB’s (emblemática casa nova-iorquina que encerrou as atividades em 2006) na ideia de que é uma casa que formou uma cena. O fim do Hangar não é o fim desta cena, mas é reflexo de seu enfraquecimento, ou mesmo o fim de um ciclo. De toda forma, a casa cumpriu seu papel com aquela geração, e seguramente foi a casa mais importante da história do País para o underground brasileiro”, comenta o jornalista e diretor de cinema, Wladimyr Cruz.
Em outubro do ano passado, em evento comemorativo aos 18 anos da casa, o proprietário do espaço, Marco Alemão, fez o anúncio da despedida. De lá para cá, diversas bandas de todos os cantos do Brasil agendaram as próprias despedidas.
“A concepção de banda mudou muito. Antigamente, as pessoas montavam uma banda para se divertir com os amigos e agora montam banda para fazer sucesso. Perdeu a essência de uma banda de rock. E a gente decidiu fazer a última temporada do Hangar no próximo ano. Não foi uma decisão fácil”, comentou Alemão à época, em um vídeo no Facebook.
De fato, a chegada de bandas como CPM 22 e Dead Fish ao mainstream, além da explosão do emocore com Fresno, NxZero entre outras, contribuiu para esse cenário. Algo semelhante ao que ocorreu em Santos. Durante um período, muitas bandas passaram a investir no mesmo modelo do Charlie Brown Jr, em busca do sucesso. E isso matou, por um tempo, a diversidade sonora da região.
Ao justificar a importância do Hangar 110 para o underground nacional, Cruz cita a paixão dos proprietários pelo trabalho. “Não é um estabelecimento comercial comum. Ela é a materialização de um sonho de um casal – e tantas outras pessoas, que queriam um local para isso, para o underground, para o punk, para a cultura alternativa. Outros lugares abrem as portas pra isso, o Hangar é isso”.
O baixista da banda carioca Carbona, Melvin Ribeiro, que se apresentou 34 vezes no Hangar 110 entre 1999 e 2017, acredita que o cenário ainda precisa de uma casa como essa.
“O público com certeza ainda precisa de um lugar como o Hangar, com todo esmero nas produções e no som, com capacidade para receber um público maior. Mas essa ficha não caiu a tempo para novas gerações. Faz parte. Tudo certo”, comentou o músico, que assina uma coluna quinzenal no Blog n’ Roll às quartas-feiras.
Para Cruz, São Paulo tem outros espaços importantes, mas sem comparação. “Com seu fim com certeza fica uma lacuna para as bandas autorais e independentes”.
The Bombers
Surgida em 1995, a The Bombers realizou dez apresentações no Hangar 110, em momentos distintos da carreira. A primeira vez dos santistas foi em 2002, quando tocaram com a paulistana Eviltruckers, em uma festa comemorativa dos 50 anos de Dee Dee Ramone, ex-baixista do Ramones. Depois, os músicos retornaram com a Vans Zona Punk Tour, turnê itinerante promovida pelo Zona Punk, do Wladimyr Cruz, acompanhado de nomes como Carbona e Mukeka di Rato. Seus últimos dois discos, All About Love e Embracing the Sun, ambos lançados pela HBB, ganharam datas especiais na casa.
“Era o CBGB brasileiro, uma casa criada originalmente para atender o público punk rock. O Hangar estava sempre lotado, todo mundo queria tocar lá, isso meio que te legitimava”, explica o vocalista, Matheus Krempel. “A coisa (cenário) hoje voltou a ser menor. Bandas tocam em pequenos bares e até mesmo em estúdios. Quem sabe daqui uns 5 anos a gente não veja um novo Hangar nascer. No momento acho difícil”, completa.
Bayside Kings
Um dos nomes mais representativos do hardcore santista nos últimos anos, a Bayside Kings iniciou suas atividades em 2010. No ano seguinte, Milton Aguiar e companhia já pisaram no palco do Hangar 110, momento que ficou marcado para o vocalista.
“Tremi na base quando passei no corredor do camarim, senti o peso da responsa. Quando entrei no palco, segurei o microfone e pensei: não acredito que estou aqui! Todas as bandas que amo passaram ali. E naquele momento era minha vez. Olhei para trás, vi meus amigos de banda e disse ‘boa noite, somos o Bayside Kings de Santos’. De resto, foram seis anos sempre passando pela casa”. Aguiar comenta que para as bandas de Santos sempre foi algo ímpar passar pelo Hangar.
“São Paulo tem a maior cena do Brasil. Pela extensão, quantidade de pessoas e bandas, tem espaço para todos. Só que no Hangar é diferente, é tipo tocar no Rock in Rio, em questão de importância”. Sobre o fim da casa, o vocalista diz que representa o encerramento de um “lindo ciclo”.
Garage Fuzz
Citada como referência por várias das bandas que surgiram nos palcos do Hangar 110, a Garage Fuzz também guarda boas lembranças do palco emblemático. “Fizemos shows memoráveis no Hangar. O primeiro, no lançamento do álbum Turn the Page, junto com o Pin Ups, em 1999, dizem que foi o primeiro show que lotou a casa”, recorda o baixista da Garage Fuzz, Fabrício de Souza.
As recordações do músico incluem ainda apresentações com nomes marcantes do cenário nacional e internacional, como Street Bulldogs, Samiam, Ignite e H2O. Para o baixista, o encerramento das atividades da casa representa o fim de um ciclo. “Quando teve explosão do hardcore, punk rock, ali perto do fim dos anos 1990, esse estilo foi somando com outros, como o emo, por exemplo.Parte do público renovou, mas teve uma galera que foi abandonando o Hangar 110. Hoje em dia é difícil manter uma casa só com esse estilo, o negócio misturou mais ainda”, comenta.