Baixista dos mais requisitados do Brasil, Alberto Continentino é conhecido e reconhecido por sua presença nos palcos e estúdios ao lado de artistas que vão de Caetano Veloso a Ana Frango Elétrico, de Adriana Calcanhotto a Bala Desejo, de Milton Nascimento a Baco Exu do Blues. O músico, porém, também faz voos solos capazes de alcançar as mesmas alturas com as quais está habituado como instrumentista acompanhante. Cabeça a mil e o corpo lento, seu terceiro álbum, lançado pelo selo RISCO, é a afirmação mais evidente dessa sua grandeza como frontman.
Em sua alquimia de maturidade e invenção, o disco confirma Alberto Continentino num lugar destacado como criador na nova geração da música popular brasileira. À frente de suas ideias, mais do que nunca ele constrói caminhos originalíssimos como compositor e instrumentista, num repertório de parcerias suas com Quito Ribeiro, Ana Frango Elétrico, Domenico Lancellotti, Tomás Cunha Ferreira, Cabelo, Kassin, Gabriela Riley, Silvia Machete, Jonas Sá, Nina Becker, Laura Eber e Negro Leo.
A lista de parceiros de Alberto Continentino no disco une diferentes gerações e nacionalidades, além da recorrência de pessoas que dialogam ou estão imersas nas artes plásticas. Um detalhe que explica um tanto do aspecto visual e táctil da poética do álbum, que se mostra já no nome das faixas: Coral, Manjar de luz, Ovo do sol, Milky Way, Negrume… Um mosaico que aponta para um universo onírico, abstrato, profundamente sensorial — mas para sentidos alterados. Um universo que se materializa em som no instante em que se dá o play.
Não é um acaso que os títulos sejam tão reveladores da essência de Cabeça a mil e o corpo lento. Afinal, o disco partiu dos versos, com as melodias sendo escritas depois por Alberto Continentino — um procedimento que ele experimentou (e gostou) nas parcerias com Silvia Machete que entraram no disco dela de 2020, Rhonda. Mais do que pelo fato de ter partido das letras, a atmosfera se afina pelo grupo de parceiros que o artista reuniu.
“A escolha dos parceiros foi a primeira composição do disco”, define Alberto. “Escolhi pessoas que escrevem de uma forma bem livre. Elas podiam mandar a letra em qualquer língua, em qualquer formato. Queria essa inspiração, para fazer algo também fora dos formalismos da canção, do que eu estava acostumado a fazer. E foi isso que aconteceu. As letras trazem paisagens, não necessariamente têm um sentido objetivo. Era o que eu queria”.
Alguns dos parceiros dividem os vocais com Alberto. É o caso de Ana Frango Elétrico, Gabriela Riley, Silvia Machete e Nina Becker. Além delas, o disco tem a participação de Dora Morelenbaum, Leticia Pedrosa e Nina Miranda. Ou seja, um time exclusivamente de mulheres. “Isso não foi pensado”, explica o compositor. “Mas eu não conseguia muito imaginar uma participação masculina. Gosto muito da combinação de voz masculina e feminina. Quando imaginava as canções, ouvia mais a textura da voz feminina”.
É interessante entender Cabeça a mil e o corpo lento como o extravasamento de uma identidade musical que Alberto não tinha exposto de forma tão nítida até aqui. Uma expansão das fronteiras de sua inventividade. Uma inventividade que sempre esteve presente em seu trabalho como autor e mesmo como baixista consagrado de outros artistas. Ou seja, a gramática da música ele domina à perfeição — mas queria escrever a sua própria gramática.
Alberto já vinha compondo e sendo gravado por bastante gente (Gal Costa, Roberta Sá, Ney Matogrosso, Adriana Calcanhotto) quando, em 2017, começou a fazer um álbum com suas parcerias que se mantinham inéditas, engavetadas. Mas esse ainda não é o embrião de Cabeça a mil e o corpo lento.
O disco, na verdade, começa a nascer algum tempo depois, quando o baixista se dá conta que o que ele queria fazer ia muito além daquele projeto — ou seja, de uma coletânea de canções feitas para outras pessoas, em contextos isolados. Ele queria começar um álbum do zero, que fosse mais fiel a suas reflexões como autor.
A ideia fermentou com a chegada da pandemia e o isolamento. Alberto marcou então uma data em outubro de 2020 no estúdio Rocinante, em Araras (região de Petrópolis, na Serra Fluminense), com o baterista Thomas Harres, o guitarrista Guilherme Lirio e o engenheiro de som (e responsável pelo estúdio) Pepê Monnerat. Encomendou as letras e fez as melodias conforme elas iam chegando.
“Entramos no estúdio com as músicas mais formatadas do que eu imaginava que ia ser quando tive a ideia lá atrás”, conta Alberto. “Acabou que o disco não ficou tão experimental quanto eu imaginava”. Porém, o resultado — um jazz pop provocador e surpreendente, polvilhado de um delicado experimentalismo — passa longe do convencional. O próprio canto de Alberto sinaliza isso. “Eu não sou cantor, mas eu tenho minha maneira de cantar. Usei recurso de dobras e coros, coloquei a voz como mais um instrumento, uma camada entre coisas outras que estão acontecendo”.
Depois das sessões no estúdio Rocinante, Alberto gravou em São Paulo, no estúdio Buena Familia, do engenheiro de som Duda Lima. Ali, teve a companhia do baterista Vitor Cabral e do guitarrista Guilherme Monteiro. Apenas uma das faixas, “Uma verdade bem contada”, foi gravada no Estúdio Marini, de Kassin, com Caio Oica na bateria, Danilo Andrade no Rhodes e nos synths, além do próprio Kassin na guitarra.
Por fim, foram convocados os sopros (Joana Queiroz, Marlon Sette, Diogo Gomes, Jorge Continentino), a percussão de Orlando Costa e os synths de Rodrigo Tavares. Além do baixo, no disco Alberto toca piano, teclados, synths, Rhodes, clavinete, Wurlitzer, percussão eletrônica e violão. Kassin assina a mixagem sozinho de oito faixas. Em Milky Way, Go get your fix, False idol e Uma verdade bem contada, ele divide a mixagem com Mario Caldato.
A sonoridade resultante guarda uma sedução contida, de luz sutil, como explica o artista. “Meu primeiro disco, Ao som dos planetas, tinha uma coisa de beleza, de alegria, solar. Ultraleve, o segundo, também tem uma suavidade. Agora eu tentei dar um verniz um pouquinho mais escuro. Amadurecer pra esse caminho também. As músicas não são tristes, mas estão num tempo um pouquinho mais nublado, cinzento”. Um clima que valoriza ainda mais a luz que se deixa entrever nas canções, nos arranjos, em Alberto, enfim.