Entrevista | Cícero – “Pode começar o disco pela quinta música que vai fazer sentido do mesmo jeito”

Entrevista | Cícero – “Pode começar o disco pela quinta música que vai fazer sentido do mesmo jeito”

No ano em que encerra um hiato de cinco anos sem inéditas, Cícero está de volta com Uma Onda em Pedaços, álbum lançado na última quinta-feira (7) que mergulha em fragmentações pessoais, estéticas e existenciais. O trabalho, o sexto de sua carreira solo, chega meses após Concerto 1, disco lançado em janeiro com releituras da carreira, e confirma a fase mais prolífica do cantor e compositor carioca. Pela primeira vez, ele entrega dois álbuns num mesmo ano, reflexo de um período marcado por recolhimento, recomeços e inquietações criativas.

Em entrevista ao Blog n’ Roll, Cícero detalhou como atravessou os últimos anos, da pandemia, que o forçou a adiar turnês e lidar com perdas pessoais, à retomada dos palcos com novos formatos de show. Também revelou como o conceito de fragmentação não apenas nomeia o disco, mas estrutura seu conteúdo e sua forma de narrar: canções que funcionam como peças soltas, com diferentes sons, histórias e possibilidades de leitura.

Musicalmente, Uma Onda em Pedaços é plural. Vai do forró ao jazz, passando por rap, indie rock e MPB experimental. Essa diversidade é acentuada pelo fato de que, desta vez, Cícero cedeu espaço para que músicos convidados contribuíssem com ideias próprias nos arranjos — imprimindo uma estética mais orgânica e colaborativa. As participações de Duda Beat, Tori e Vovô Bebê também ajudam a ampliar o espectro sonoro e afetivo do trabalho.

Além do álbum, Cícero também vai excursionar pelo Brasil a partir de outubro. E espera vir a Santos pela primeira vez. Confira abaixo a entrevista completa.

Foram quase cinco anos desde seu último álbum de inéditas. Como foi esse período pra você? Chegou a colaborar com outros artistas, ficou mais recluso ou já vinha trabalhando nesse disco? 

Foram as três coisas que você falou. Nesses últimos cinco anos fiquei mais recluso no período da pandemia, um pouco depois também, porque foi difícil pra todo mundo, tive perdas familiares. Arrastou também um tempo de luto, e após isso comecei a tocar, fiz a turnê do disco que lancei na pandemia (Cosmo, de 2020), saiu no dia do lockdown. Estava planejado para 2019, mas por força do destino caiu do disco ser lançado no mês que a pandemia estourou, e a turnê toda que estava marcada para 2020 foi cancelada. Adiada, depois adiada de novo, depois adiada de novo, até que foi cancelada. Então só fui fazer o show dessa turnê no final de 2022. Ou seja, já foram dois anos aí que comeu de vida total, porque a gente ficou no modo bunker, tentando entender o que estava acontecendo, eu pelo menos fiquei. 

Depois disso teve essa turnê de 2022, e uma outra em 2023 com uma ideia de tocar as músicas no formato live pra câmera na época da pandemia, projetados numa parede. Pensei assim: ‘e se a gente ficar trancados para sempre em casa? Como é que será o show? Vai ser tudo via transmissão online.

Essa ideia começou a nascer, de projetar sei lá, uma orquestra na parede, tocar na frente e tal. Quando a pandemia abriu em 2023, decidi levar essa ideia para os palcos. Aí fiz o Concerto 1, que era eu tocando violão com uma orquestra projetada num telão atrás, tocando os arranjos.

Acabou que a galera gostou muito do show e permaneceu. Em 2024 comecei a fazer o disco, porque tinha ficado um bom registro, e lancei no início deste ano. Só que quando acabei o Concerto 1, também vi que  já tinha um apanhado muito grande de músicas novas e senti que já tinha um motivo ali, o álbum já existia, a ideia. Acabei lançando dois discos num ano, nunca tinha feito isso. 

O título do álbum sugere fragmentação. De que forma você se sentiu “em pedaços” e como isso influenciou a composição das músicas?

Tinha um projeto de mim muito central. O que queria fazer, onde queria chegar, o que queria construir, o que queria executar, uma relação com a sua vida como se fosse um projeto mental seu. Da pandemia pra cá, as circunstâncias se mostraram muito mais fortes no que é o eu e a minha vida do que as minhas decisões. 

As minhas decisões se mostraram menores do que as circunstâncias. Por exemplo, uma pandemia, um parente que morre, enfim, as circunstâncias. E aí comecei a ver que existem fragmentos de vida, que você consegue organizar eles de alguma forma, mas eles são fragmentados em um caos.

Tem o você jornalista, tem o você filho, tem o você amigo, tem o você cidadão, tem o você namorado, tem vários vocês, né? E você toma algumas decisões em relação a essas pessoas, mas as circunstâncias definem também muito para onde essas pessoas vão. Acho que o disco fala disso. Ele é um disco que não tem uma narrativa central, um projeto central de história, ou um começo, meio, fim, ou não fala uma… São fragmentos, pedaços de narrativas soltas que você pode organizar da forma que você quiser. Você pode começar o disco pela quinta música e ele vai fazer sentido do mesmo jeito.

O disco tem muitas referências e estilos diferentes: forró, rap, jazz, música eletrônica, experimental. Como essas influências surgiram no processo de criação? Foi algo planejado ou mais intuitivo?

Isso é uma evolução meio que do que venho fazendo desde o meu primeiro disco, só que acho que dessa vez, o diferencial é a ideia de que cada música tem uma natureza diferente. De ter uma música que é um baião, um forró, uma eletrônica, uma é um indie rock, a outra é uma marchinha, isso já vinha. Mas nesse disco sinto que isso ficou mais ressaltado porque chamei pessoas para terem as ideias delas para os arranjos da música num lugar muito de criação. 

Por exemplo, o pianista tocou o piano que ele pensou ali na hora conhecendo a música, o baixista criou a linha de baixo ouvindo a música, o baterista idem, entendeu? Chamei pessoas que tinha muita admiração, carinho e amor para que elas dessem as ideias propriamente ditas dos instrumentos que iriam tocar.

Isso fez com que as referências ficassem mais evidentes. Por exemplo, quando fui fazer uma música com uma onda mais jazz, chamei um cara que é do piano do jazz, da bateria do jazz, que tem essa linguagem de jazz. Então, naturalmente, a música ganha essa outra camada do que seria, por exemplo, nos meus outros discos, quando tocava o violão, o baixo, a bateria também. Às vezes chamava um amigo pra tocar tudo também. Então, assim, a ideia de ser uma referência vinha, mas às vezes a linguagem propriamente dita da referência não vinha tanto, por não ser um nativo daquilo. 

Chamei um cara do acordeão do forró, que toca em baile todo final de semana com trio de forró, faz baile atrás do outro, ele tem a linguagem do baile. Acho que foi nesse lugar que o disco foi ganhando mais clareza nessas referências diferentes. As coisas ficaram mais marcadas.

Você contou com participações da Duda Beat, Tori e Vovô Bebê. Como essas colaborações aconteceram? Já havia trabalhado com eles antes?

São grandes amigos há muito tempo. A Duda conheço há uns 15 anos. A gente nem tinha disco ainda. O Vovô Bebê há mais de dez anos.

A Tori conheço há menos tempo, mas a vi cantando e a gente já se conhece do Rio de Janeiro, de se encontrar, trocar ideias há muito tempo. São pessoas que já tinha um afeto. E aí quando fiz as músicas vi que a personalidade dessas pessoas tinha a ver com a personalidade da música.

E como a ideia do disco era ser um disco gregário, por exemplo, tem participação especial no piano. A personalidade do piano do disco é do Marcelo Galter. Aí tem participação especial no baixo. A personalidade dos baixos do disco, que são a cintura do disco, o groove do disco, é do Vovô Bebê. Praticamente todos os baixos. 

Por fim, tem a voz. Quando a Duda Beat canta, a música fica com a cara dela. Quando o Vovô Bebê canta, a música fica com cara dele. As participações vieram mais na intenção de serem a personalidade da participação do que só a participação pelo valor agregado da participação.

A faixa Meu Amigo Harvey mistura sample de Brahms, cinema antigo e referências modernas. Como nasceu essa ideia tão rica em camadas?

É uma música que deixo normalmente numa posição do disco de quem já chegou até lá. Pra quem já entendeu a linguagem, quem já não pulou pro outro álbum, quem já entrou naquele universo e já tá disposto a ver onde pode dar. Geralmente deixo essas músicas nesse lugar.

Tanto é que a próxima é tranquila, que é uma música que não tem idioma nenhum. O Meu Amigo Harvey é uma ideia antiga que tinha de samplear Brahms, só que tinha ela guardada na minha cabeça porque precisava ter um bom motivo pra samplear Brahms. Basicamente pensava que não dá pra samplear por samplear um cara que admiro tanto.

E aí nos últimos tempos vi esse filme, Meu Amigo Harvey, que é um filme dos anos 50, de um cara que tem um amigo imaginário, um coelho de dois metros de altura. Foi baseado numa peça escrita por uma mulher que foi considerada uma das primeiras peças feministas. É um filme feminista dos anos 50, em preto e branco, na época de Dançando na Chuva

É um filme que levanta questionamentos muito bonitos sobre solidão e companhia, sanidade e loucura. E aí comecei a traçar um paralelo dessas duas coisas que sentia com uma temática que o filme também despertou em mim dessa nova forma de relação solidão e companhia que são as telas, a vida conectada via satélite, via tudo. 

Aparentemente, na minha cabeça, esses três pontos, uma música do século 19, um filme do século 20 e uma tecnologia do século 21, se cruzavam num ponto de vista que achei carismático.

Acho uma música divertida, em último grau. Sabe? Foi uma música que veio de uma vontade puramente… todas as músicas desse disco vieram de vontades puramente criativas. Mas essa foi a que foi mais só pela diversão de ser criativo. 

Algumas fiz mais pra valorizar um refrão bonito, outras fiz pra ter um groove dançante. Mas essas foi só algo como ‘vou fazer o que acho legal de fazer’.

O disco termina com a frase “e o passado segue adiante”. Que passado é esse que você está deixando pra trás? E o que espera do futuro?

O passado que é o presente constantemente virando passado, né? É um ponto de vista do passado e do presente. É você deixar de se conectar com as coisas nessa relação e tentar estar um pouco mais presente mesmo, porque o passado é isso. 

Uma pessoa que está na sua vida ou não está na sua vida é uma decisão filosófica. Essa pessoa está no passado ou não está no passado? Em que momento ela vive o seu passado? Ela está no seu presente? Ela está ou não está? Sabe? E foram questões que foram sendo suscitadas pelas coisas que aconteceram nos últimos cinco anos.

Terminei relacionamentos amorosos, pessoas importantes da minha família morreram. Essas coisas foram para o passado ou ficaram eternamente presentes? Então, de certa forma, o passado segue adiante sintetizando isso que é uma relação de deuses e assim como todos os deuses eles são formas de você organizar a tua mente, as tuas decisões, mas só o que existe é o presente sendo vivenciado, sabe? O futuro e o passado estão desmandados, que é o que essa frase diz. 

A turnê começa em outubro. O que o público pode esperar desses shows? Você pretende focar mais nas músicas novas ou equilibrar com os álbuns anteriores? E existe a chance de trazer esse show para Santos ou a Baixada Santista?

Faço um show que normalmente toco quase tudo do álbum mais recente, só não toco às vezes o que é muito difícil de ficar legal ao vivo porque é experimental demais, mas acho que, por exemplo, Harvey é experimental demais, mas acho que vai ficar bom ao vivo porque tô pensando em fazer uma banda. 

O Concerto 1 era com a orquestra projetada, era virtual, mas gosto de banda, guitarra, baixo, bateria, então fiquei pensando em misturar essas duas linguagens. Vai ser uma coisa entre a banda e a máquina juntos, que acho que pode funcionar, pode ficar bonito.

Vai ser uma turnê extensa, vou tocar em muitos lugares, quero muito tocar em Santos, nunca toquei em Santos, seria ótimo. Pessoas de Santos, me chamem pra tocar aí! 

Queria ter formatos de shows diferentes para tocar em tudo que é lugar, seja um voz e violão num lugar pequeno, seja uma banda pra um lugar grande, acho que as pessoas podem esperar, são shows interessados em explorar seus sentidos.