Matheus Degásperi Ojea
Poucos textos que começam com a frase “eu estava de férias na Europa”, ou alguma variação dela, realmente valem a pena. Acontece que em agosto deste ano eu realmente estava de férias na Europa e meio que vai ser sobre isso mesmo, então não tenho muito pra onde correr.
Claro que estaria escrevendo para o blog errado se fosse só a viagem, mas aproveitei a minha estadia por aquelas bandas para ver alguns shows e é disso que eu pretendo falar nesse e em mais uns quatro ou cinco textos que devem começar de maneira menos estranha.
Inicialmente planejando realizar um sonho antigo e casar o rolê com um dos grandes festivais do verão europeu, fui impulsionado pelo mantra ‘só se vive uma vez’ e pelo mesmo tipo de irresponsabilidade financeira que deu origem à viagem e acabei vendo dois festivais e alguns shows solo em três países pelo caminho, incluindo aí artistas que devem vir para o Brasil (eu vi a Chappell Roan, mas só estou adiantando o nome dela pra gerar interesse pros próximos posts), outros que provavelmente não vão vir, como o desse texto, e um que era pra ter vindo mas que não rolou por conta de uma hérnia.
Tudo isso aconteceu há quase um mês, mas eu não ia escrever na hora, afinal, estava de férias. Como foi à meio mundo de distância, como diria o Oasis (que eu ainda não vi), tomei a liberdade de violar o imediatismo jornalístico, bem como algumas outras regras, e acreditar que ainda assim exista algum interesse no que eu tenho a dizer.
Sem mais delongas, o primeiro show que eu vi foi do Gibby Haynes, vocalista do Butthole Surfers, lá em Amsterdam, na lendária casa de shows Paradiso, no dia 12 de agosto.
Paradiso

A Paradiso é a melhor casa de shows do mundo. Se a Terra funcionasse de acordo com a minha vontade, ela ficaria em Santos e todos os shows do planeta seriam feitos lá (obviamente eu resolveria algumas outras coisas antes disso). O local funciona há décadas no que era uma antiga igreja perto de um dos canais de Amsterdam.
Por dentro, os vitrais ficam atrás de onde hoje é o palco, dando um visual único para qualquer apresentação ou festa. Além disso, a acústica combinada com o equipamento do lugar e, claro, os profissionais envolvidos, produzem um dos sons mais perfeitos que eu já ouvi ao vivo, capaz de fazer estudantes de conservatório parecerem a melhor banda do mundo. Eu não tô exagerando, eu vi uma banda de conservatório tocando lá, mas já vamos chegar nisso, assim que eu terminar de elogiar a Paradiso.
Além de mundialmente famosa, a casa é motivo de orgulho para os holandeses. Um dia depois do show, enquanto eu fazia a coisa mais de turista possível na cidade – das que não envolvem o café que vendem lá – e andava de barco pelos canais, o timoneiro, nascido e criado em Amsterdam, nos conduziu pela frente do lugar e o apresentou dizendo que “praticamente todas as bandas do mundo já tocaram aí”.
A guia que acompanhava, uma italiana que vive na cidade há alguns anos, complementou dizendo que as bandas maiores costumam tocar no Ziggo Dome, outro espaço da cidade que comporta a capacidade de uma arena, ao que o timoneiro prontamente retrucou dizendo que “não, as bandas grandes também tocam aí porque eles gostam”.
E ele tem razão. A casa, que tem capacidade pra umas 1.500 pessoas, até hoje conta com uma programação bem variada e, só nesse ano, já recebeu artistas como Lucy Dacus, The Wombats, Franz Ferdinand, Nação Zumbi e Liniker (sim, os ‘nossos’ Nação Zumbi e Liniker). Mesmo as bandas grandes que não têm a vontade de ‘encolher’ por uma ou duas noites para tocar no local têm grandes chances de terem passado por lá antes de ficarem maiores.
Provavelmente esse longo preambulo já deixou clara a minha empolgação para ver um show na Paradiso. A minha estadia em Amsterdam coincidiu com a apresentação do Gibby Haynes. Apesar de gostar do som da antiga banda dele – que não toca desde 2016 – e me divertir com grande parte das entrevistas que ele já deu, eu não sabia bem o que esperar de um show solo e o local do evento com certeza pesou na hora de comprar o ingresso.
O resultado foi uma noite de algumas surpresas, a começar antes do show principal.
Scott Thunes Institution of Musical Excellence
Pouco depois de eu entrar na Paradiso e comprar uma Heineken – o local não aceita dinheiro em espécie e o cartão de débito que fiz pra viagem não passava lá (e nem na principal rede de mercados da cidade, que também não aceita dinheiro em espécie, então na dúvida é bom levar mais de um tipo de cartão, coisa que eu não fiz, apesar dos vários avisos como o que eu acabei de dar que eu recebi), mas a casa disponibiliza um cartão próprio para carregar com euros físicos na bilheteria – o primeiro show de abertura começou.
A já citada banda de conservatório era do norte-americano Scott Thunes Institution of Musical Excellence, formada por músicos de 16 a 24 anos, que apresentou um repertório de covers predominantemente de punk rock, com bandas como Minutemen e Dead Kennedys. Os membros se revezavam entre os instrumentos e, apesar de não ser a escolha mais empolgante para abrir um show, a apresentação foi honesta e a presença deles ali seria ainda seria justificada.

Evischen rouba a noite
Depois da primeira apresentação, a mesa de DJ mais estranha que eu já vi na vida foi colocada no meio da pista da casa. O que se seguiu foi tão bizarro quanto a mesa, pelo menos eu nunca vi ao vivo nada como o set da norte-americana Victoria Shen, mais conhecida como evischen.
Com um trabalho completamente experimental, a DJ parecia capaz de fazer música estranha – ou, como muitos vão preferir chamar, não sem razão, barulho – com basicamente qualquer coisa, desde um chicote estalando no ar, uma variedade de cabos ou um pente passando pelo próprio cabelo.
Apesar de não ser exatamente o tipo de som que qualquer pessoa curte sem estar mergulhada na atmosfera, a performance dela, que arrastou a mesa de um lado para o outro, subiu e desceu dela, se contorceu e conduziu o show todo do meio da pista, deixou todo mundo da plateia ou meio embasbacado, ou meio confuso e no mínimo meio curioso com o que estava acontecendo.
Para mim, roubou completamente a noite. Eu não sou muito de filmar show, mas desse eu fiz vários vídeos só pra depois garantir que eu já não estava bêbado e que rolou tudo aquilo mesmo. Quando parecia que a DJ já tinha usado todo o seu repertório, ela surpreendia com alguma coisa diferente.
Tem uns vídeos que eu subi pra entenderem o que eu tô falando:
Gibby Haynes
Como eu escrevi mais pra cima, a presença da banda do conservatório seria justificada e o motivo é bem simples: eles foram os músicos que acompanharam o Gibby Haynes durante essa turnê europeia.
A escolha é estranha não pela qualidade dos músicos, que executaram bem o repertório feito apenas de canções da ex-banda do vocalista, que não são as composições mais ‘retas’ do mundo, mas porque deu a impressão do show ser uma grande festa de fim de ano de alguma escola.
Acontece que o Gibby Haynes meio que apadrinhou essa instituição e parece, além de frontman, um professor excêntrico, incluindo elogios aos ‘alunos’ entre uma e outra música. O Paradiso não estava vazio, mas também não encheu para a apresentação e, na pista, uns quatro holandeses tentavam abrir uma roda sem muito sucesso, mas pareciam se divertir só com a tentativa.
A apresentação durou pouco mais de uma hora e começou com a escrachada The Shah Sleeps in Lee Harvey’s Grave e passou por alguns dos clássicos não intencionais da banda como Cough Syrup, Sweet Loaf, To Parter e Jimi.
Haynes, que usava um boné da rede de supermercados Lidl – gigantesca na Europa e, por algum motivo, também uma tendência de moda meio irônica – interagiu com o público, perguntou pelo filho e a esposa que assistiam da plateia e ficou grande parte do show no canto do palco, atrás da mesma caixa com pedais e sintetizadores que usava nos tempos de Butthole Surfers, se revezando entre dois microfones e um megafone e às vezes dando instruções para os músicos, com os quais ele parecia muito feliz de dividir o palco.
É mais contido do que era antigamente, quando chegou a disparar uma shotgun falsa no público do primeiro Lollapalooza (o que não cairia muito bem hoje em dia, convenhamos), mas o espírito do ‘faça você mesmo’ segue lá.
Apesar de ter feito basicamente um show dos Butthole Surfers sem os Butthole Surfers, o clima de apresentação de escola me incomodou durante todo o set. Muita gente, no entanto, conseguiu abstrair isso. O cara do meu lado, por exemplo, berrou alguma coisa em holandês pra mim e, quando viu minha cara de interrogação, traduziu: “fucking awesome”. Ele mandou mais uns três fucking awesomes até o fim do show, o que em bom português seria algo como “muito foda”.
O saldo
No geral, o saldo da noite foi bastante positivo. Para quem gosta de música ao vivo, fica difícil não recomendar uma visita ao Paradiso, mesmo que a data da sua viagem só coincida com o show da pior banda do mundo no local, já que, ainda assim, com certeza ela vai ser menos pior lá.
Como o Gibby Haynes está longe de ser a pior banda do mundo, para mim valeu bem mais a pena do que nesse cenário hipotético, apesar de que eu ainda acho que o grande show da noite foi o da evishcen.
Uns dias depois eu veria uma outra banda icônica, fundamental e outros milhões de adjetivos do tipo, dessa vez no jardim de um palácio. Mas isso é assunto para outro texto em outro dia.
Setlist – Gibby Haynes – Paradiso (12/08/25)
The Shah Sleeps in Lee Harvey’s Grave
American Woman
Dust Devil
100 Million People Dead
Revolution Part 2
Dum Dum
To Parter
Tornadoes
Cherub
Cough Syrup
Alcohol
Sweat Loaf
Graveyard
Jimi
Bis:
The Shah Sleeps in Lee Harvey’s Grave (Reprise)