MANOEL HERZOG
O grande expoente do romantismo norte-americano, Edgard Allan Poe, é um dos escritores que mais influenciaram o rock’n’roll. A pegada dark de sua poesia ecoa no som de metais, góticos, baladas, folks. Sobre sua obra já criaram Lou Reed, Allan Parsons Projetct, The Cure, Arctic Monkeys e tantos outros.
Diz Lou Reed sobre Poe: “ Decerto Edgar Allan Poe é o mais clássico dos escritores americanos – um autor mais peculiarmente em sintonia com o bater do coração do nosso novo milênio do que alguma vez foi em relação ao seu século. Obsessões, paranoia, atos deliberados de autodestruição cercam-nos constantemente. Embora envelheçamos, ainda ouvimos os lamentos daqueles para quem a atração pelo pesaroso caos é monumental. Eu reli e reescrevi Poe para voltar a colocar essas mesmas questões. Quem sou eu? Por que sou atraído por aquilo que não devia? Debati-me com estes pensamentos incontáveis vezes: o impulso do desejo destrutivo – a ânsia pela auto-mortificação. Na minha mente, Poe é pai de William Burroughs e Hubert Selby. Estou eternamente a ajustar o sangue deles às minhas melodias.”
https://www.youtube.com/watch?v=pohYpxBhOoU
O mais famoso poema deste autor é O Corvo, escrito em 1845 e logo popularizado como uma das maiores construções em verso da literatura. Nele Poe usa a metáfora de uma ave agourenta, um Corvo, para simbolizar a persistente lembrança da amada morta, Leonora. O corvo invadiu seu quarto, pousou num busto sobre a porta e lá ficou, para sempre, a repetir: Nunca mais.
The Raven ganhou versões em francês de ninguém menos que Mallarmé e Baudelaire. Para o português dois gigantes verteram a obra: Machado de Assis e Fernando Pessoa. Atualmente surge uma séries de adaptações de O Corvo, por poetas contemporâneos. Não me contive e fiz a minha também, onde procurei abrasileirar a história: do busto de Atena criei uma negra namoradeira, daquelas estátuas de barro que entopem as lojas de souvenir turístico, e do corvo, ave que o Brasil desconhece, fiz uma coruja. Aliás, a ideia inicial de Poe era com esta ave. Aqui vai minha versão:
O CABORÉ
Numa meia-noite escura, pensava eu, cabeça dura,
Procurava em livros cura, terapia, panacéia,
E já quase cochilava quando achei que era ela, brava,
Batendo à porta, e soava a batida na minha idéia.
“É ela a bater,” eu acho, “batendo na minha idéia” –
Só isso, nada mais é.
Perfeitamente eu me lembro, foi bem no mês de setembro;
O meu inflamado membro corroia a gonorreia
E o pulmão era só asma; não há ungüento ou cataplasma,
Nas leituras, só o fantasma – fantasma da minha Andrea –
Anjo de esplendor luzente, radiante a minha Andrea –
Nome perdido, sem fé.
Uma bruma vespertina, qual deprimente cortina
Me envolveu, tolheu meus olhos, e um cagaço em diarreia
Quase vaza; fiz contidas, do coração, as batidas
“Quem será o filhadaputa, puta, que maldita idéia –
Um tardio filhadaputa que me martela na ideia,
Isso e só, nada mais é.”
Então me enchi de moral, pensei, “Vou partir pro pau.
Mermão,” grunhi, “ou mermã, diz logo qual é que é;
Porque eu tava mei dormindo, e devagar tu foi vindo,
Bateu na porta tão lindo que me ecoou nas ideia
E até achei que ouvi coisa.” – Daí que abri porta meia; –
Escuro a não mais poder.
A olhar a profunda noite, martirizei-me em açoites
Cogitando sonhos loucos, dos quais ninguém faz idéia;
Mas, silêncio de silício, como a rir do meu suplício,
Um só nome, num bulício de sussuro disse, “Andrea?”
Isto eu murmurei, e um eco me cuspiu de volta, “Andrea!” –
Só isso mesmo, Mané.
Voltei pra dentro do quarto quase que tendo um infarto,
Então foi que ouvi mais alto a batida e pus-me em pé.
“Tô, falando, mas que piça!” e por través da treliça
Fui olhar. Meu pelo eriça de medo desse mistério –
“Que o coração me sossegue,” pensei, “vou ver que mistério
Há aqui… Só vento o que é.”
Abri a veneziana, quando entrou logo a sacana
Duma coruja funesta, vinda de remotas eras
E eu pasmei, feito uma besta, sem saber bem por qual fresta
O monstro entrou, voou tudo e ao final pousou seus pés
Na negra namoradeira, busto em barro de mulher.
Pousou no busto e: “Qualé.”
A ave-agouro, em sua frieza, converteu minha tristeza
Num sorriso de cinismo, e me fitava, de ar blasé
“Fala logo, Satanás,” disse, “fala e que te vás,
Vade retro, vai pra trás, tenebroso caboré –
Mas antes fala qual nome no Inferno tu tens, qual é?”
Disse a coruja: “Qualé.”
Admirou-me, da coruja, ouvir uma dicção cuja
Clareza era imensa, mas sentido não dava pé.
Na verdade é muito insano, nunca antes um ser humano
Tinha desvendado o arcano de ouvir fala a um caboré
Trepado sobre uma estátua, improvável caboré
Do estranho nome: “Qualé”.
Mas, o bicho ali pousado, sobre a estátua, desforado,
Falou só aquela palavra, como quem nada mais quer.
E nada mais concluiu, calou, “Puta que o pariu,
Vai daqui, pássaro vil, já perdi amigos, mulher,
Manhã cedo a ti te perco. Perdi amigos, mulher”.
E a ave falou: “Qualé.”
Me assustei de, papagaio, repetir feito um lacaio
“Certeza,” eu disse, “caraio, tu arremeda eu sei quem é,
Eu sei que é o Diabo, peste, tu repetes o teu mestre
Feito uma arara inconteste, repetes feito um mané
As pragas do teu guru. Só que eu próprio sou Mané,
Te pergunto, qual? – Qualé?”
A coruja amaldiçoada da dor me fez dar risada,
De mim mesmo, ali, parado feito um triste pangaré
Ouvindo uma estúpida ave repetir seu improvável
Refrão muito deplorável. “Que maldito caboré,
Fidiquenga, a minha benga tua mãe viu num cabaré!”
Disse a coruja: “Qualé.”
Parado no meu lugar, sem sílaba pronunciar
Pra ave que me espetava, feito agulhas de crochê,
Seus olhos de ferro obstetra, sob a luz, na violeta
Almofada (era a boceta) de veludo da mulher
Que tanto amei, violeta xana da amada mulher –
Se hoje a peço, ouço: “Qualé?”
E o ar se encheu de langor, fumo de um defumador
Abre-caminho de exus de um ancestral candomblé.
“Desgraçado, Deus te deu uma chance e tu perdeu!”
Falei pra mim, “Permitiu Deus de tu esquecer Andrea,
‘Toma a água do Letes, fio, bora lá esquecer de Andrea.’”
E a coruja riu, “Qualé.”
“Se tu és demônio ou profeta,” implorei, “se anjo ou capeta,
Se foder-me a cacholeta por ti é o que o Diabo quer,
Botar-me feito mendigo, sem amor, dinheiro, amigo,
A ouvir bater no postigo vago espectro de mulher,
Diz-me se há, no Inferno, alívio pra falta dessa mulher!”
Grasna a coruja, “Qualé.”
“Se tu és demônio ou profeta,” implorei, “se anjo ou capeta,
Pelo Céu que a nós dois cobre, pelo Deus que por nós é,
Fala a esta alma que só perde se após a morte, no Éden,
Vislumbro, ao menos, o que é de maior valor, minha Andrea.
Se ao menos sinto, de longe, o cheiro, a aura de Andrea.”
Grasna a coruja, “Qualé.”
“Que este brado nos separe, pássaro do Cão, que pares
De me foder o juízo, volta a teu pai, Baphomet!
Leva tuas penas castanhas junto das tuas patranhas,
Teu pai Cão, suas artimanhas, sai do busto de mulher
Da negra namoradeira que me deu minha mulher!”
Grasna a coruja, “Qualé.”
E o caboré, feito estátua, horror de fogueira fátua,
Dia após dia me mata na unha aqui em meu chalé;
Feito um demônio que sonha, os seus olhos de peçonha
Constrangem se penso em bronha lembrando minha mulher;
E morro da falta estranha, tamanha, dessa mulher;
E ouço das hostes: “Qualé.”