O que você está procurando?

Poesia e Rock - Vários

A selvagem e libertária antropofagia poética e musical dos anos 80: Júlio Barroso

MARCELO ARIEL

O legado do poeta e compositor Júlio Barroso ainda será devidamente avaliado, criador da Gang 90, uma das mais instigantes bandas de rock do Brasil, influenciada por Kid Creole and the Kokonuts, Talking Heads e Gang of Four. A Gang 90 teve uma vida marcante, vertiginosa e breve como a de seu criador, vítima de uma queda acidental que até hoje muitos interpretam como suicídio, tese que o documentário Marginal Conservador, de Ricardo Alexandro, disponível do You Tube, coloca em xeque.

Continua depois da publicidade

O que importa no trabalho de Júlio Barroso é a vida e não a morte. Podemos afirmar que ele, Cazuza e Renato Russo compõe uma espécie de coluna de fogo criativo capaz de queimar de uma vez por todas não apenas as fronteiras entre a poesia e a canção, mas também os limites entre a vida e a arte, do mesmo modo e guardadas as proporções que Joe Strummer, Sid Vicious, Nick Drake e outros poetas do rock que fizeram de suas vidas um laboratório de sensações e viveram como vírus no sistema.

O caso de Júlio Barroso o aproxima de uma certa antropofagia musical, um dos DJs pioneiros do Brasil, pesquisador musical e jornalista cultural, este seu lado mais oswaldiano foi mapeado pelo livro A Vida Sexual do Selvagem lançado pela extinta editora Siciliano e há tempos esgotado, há alguns exemplares disponíveis no site Estante Virtual, um livro que precisa ser reeditado com urgência.

Continua depois da publicidade

Havia uma dose de hierofania nas letras de Júlio, tomo por exemplo Jack Kerouac que reproduzo abaixo e coloco em itálico a hierofania, o lado profético, a letra faz referência a um sonho com o escritor e poeta beat Jack Kerouac onde Júlio assiste as torres gêmeas queimando décadas antes do 11 de setembro de 2001:

Jack Kerouac

Ontem a noite eu sonhei
que eu era Jack Kerouac
E subi num terraço: rua Houston
E vi as duas torres gêmeas brilhando.
O cabelo louro da menina
As tranças negras do crioulo
A sua guitarra – a sua angústia calma.
Eu desci
Peguei a minha lata de spray
Sai pela rua, pintei dois olhos verdes nas paredes.
Ontem a noite eu sonhei
que conversava com Jack Kerouac
Ele chegava e me dizia
“Hey Man! eu renasci black
E agora sou um tocador de piston!”
Eu só sei que o som era tão alto que despertou o mundo inteiro
Eu acordei, e saí mandando brasa nas estradas do mundo.
Ei Jack! Bye Bye

Continua depois da publicidade

Outra letra-poema que destaco é O fundo do coração, escrito para a irmã Denise Barroso, onde aparecem algumas ideias altamente sofisticadas trabalhadas de um modo simples e direto, típico da poesia marginal que estava acontecendo naquele período, dos poemas de Cacaso, Chacal , Ana C. e outros, os versos que considero verdadeiras pérolas de toque estão em itálico:

O fundo do coração

A noite é princesa caída por mim
No lago do peito, secreta solidão
Eu lembro lugares, pessoas que frequentei
Cenas que vi, filmes que já filmei
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração
Eu sou marinheiro, navego com a lua
Meu mar é a rua, amar só você
No movimento exato do olho do lince
O raio de laser, na selva do olhar
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração
Eu canto donas de castelo
Não sou louco, louco não
Eu brinco de polichinelo
Como o bobo coração
Mil e um palácios de areia
Noites de sereias
Eu ouço o som de uma nota só
A noite é princesa caída por mim
No lago do peito, secreta solidão
Eu lembro lugares, pessoas que frequentei
Cenas que vi, filmes que já filmei
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração
Apareça qualquer hora agora
E mora no meu coração

Continua depois da publicidade

Me pergunto quando uma trilha de novela da Rede Globo terá uma canção-poema-manifesto tão densa e anárquica quanto Nosso Louco Amor que entre outras coisas cita “Um lance de dados”, o poema mais importante do poeta francês Mallarmé:

Nosso louco amor

está em seu olhar
quando o adeus
vem nos acompanhar
Sem perdão não há
como aprender e errar
Meu amor,
vem me abandonar
Já foi assim
mares do sul
entre jatos de luz,
beleza sem dor
a vida sexual
dos selvagens
Agora aqui
passou a dor
na rua a luz
da cidade ilumina
nosso louco amor
Nosso louco amor é mais que um lance de dados,
não abolirá nosso caso
Nosso louco amor
está em seu olhar
quando o adeus
vem nos acompanhar
Sem perdão não há
como aprender e errar
Meu amor,
vem me abandonar
Já foi assim
mares do sul
entre jatos de luz,
beleza sem dor
a vida sexual
dos selvagens
É bom saber
voltou a ser
na rua uma
estrela ilumina
nosso louco amor

Continua depois da publicidade

Nosso louco amor é mais que um lance de dados,
não abolirá nosso caso

Por estas e outras, Júlio Barroso está na minha relação de grandes poetas do cancioneiro brasileiro. A Gang 90 lançou três discos: Essa Tal de Gang 90, Rosas e Tigres, Pedra 90.

Continua depois da publicidade

COLUNAS

Advertisement

Posts relacionados

BR

O pop e o coração partido têm inspirado inúmeros sucessos icônicos, como “Someone Like You” de Adele, “Wrecking Ball” de Miley Cyrus e “Without...

BR

A banda brasiliense de ska punk Caos Lúdico lançou o segundo single do ano, nesta quinta-feira (12), Fresta. A música traz influências de bandas...

Entrevistas

No mês que irá estrear no Lollapalooza, a banda de reggae Planta & Raiz traz mais uma novidade: um single em parceria com Julies,...

Publicidade

Copyright © 2024 - Todos os direitos reservados

Desenvolvimento: Fika Projetos