Memórias de um B(r)oqueiro 3

Memórias de um B(r)oqueiro 3

A Boca de Santos tinha a lei do cão, mas o cão é o mais amigo e confiável. Então era uma lei legal

No período entre 1964 e 1972, o baterista Raimundo Vigna viveu intensamente na Boca de Santos, região central da cidade, que concentrava várias boates com shows e stripteases.

Madrugava nas casas, ganhando em dólar, para se apresentar aos marinheiros europeus recém-chegados. Enquanto os gringos carregavam as prostitutas nos ombros, Vigna mantinha sua concentração no palco, para evitar erros nas músicas.

Mas o músico garante que teve vezes que ficou difícil manter a pose. Em uma delas, uma mulher acertou uma flechada no bumbo da bateria de Vigna. “Nas ruas tinham uns índios de Itariri que vendiam flechas. Ai uma hora, uma conhecida tomou todas e entrou puta da vida, por causa de alguma galinhagem minha e acertou uma flechada no bumbo da bateria”, relembra.

Recentemente, Vigna encontrou a figura na internet. “Ela conheceu há uns 30 ou 20 anos um capitão de navio e casou com ele. O cara a levou para a Alemanha, mas ela mantém uma loja em Santos. Ela era maluca. Fazia strip no El Moroco e no Night and Day”.

Mas muito mais difícil de lidar com as maluquices de algumas mulheres, era enfrentar o delegado (o músico não recorda o nome). “O cara ferrava todo o rock and roll. Só por você ser cabeludo, você podia entrar em cana”, lembra.

Para fugir do delegado, Vigna conta que os frequentadores da Boca possuíam um comum acordo. Segundo o músico, a experiência nas boates mostrou o real significado da palavra ética. “A regra era não entregar, nem sacanear ninguém. Respeitávamos todos: as prostitutas, os músicos e a velha guarda (da sanfona e trompete)”.

Os marinheiros estrangeiros também entravam no esquema. Só queriam curtir os espaços, sem confusão. “Eles pediam uma música, nós tocávamos e eles jogavam jaquetas e casacos de couro, tipo Buffalo Bill”. Quando as peças não vinham das mãos dos marinheiros, as prostitutas ajudavam. Depois dos programas, levavam chapéus e roupas para os músicos.

“1964 (início da trajetória do batera) foi um ano sagrado. Não tinha antecedentes para nós. Era só Elvis Presley (que tocava), mas foi lá na Boca que rolou Beatles e Rolling Stones primeiro. Todo mundo queria descer (de São Paulo) para tocar lá”.

Vigna conta que o cenário era muito propício. “As prostitutas falavam cinco idiomas para atender os marinheiros. Elas transavam no meio da boate, com o show rolando. Era algo parecido com as capas de LPs do Rolling Stones. Ali se vivia o verdadeiro espírito rock and roll”.

“Aquilo era meio Broadway. Tudo iluminado, alegre. Uma calçada cheia de gente, com aquelas meninas tudo maquiadas e com microssaias”.

O clima só ficava pesado quando alguém entregava algum frequentador do local para a polícia.

“O Boiadeiro ficava entre a polícia e o bandido. Não era uma pessoa ética. Resultado: cortaram o dedo dele e penduraram na esquina do Chave de Ouro (restaurante famoso da área)”.

O bandido entregue por Boiadeiro foi o Pirulão, conhecido como o Rei da Droga em Santos, segundo Vigna. “Era um tipo mafiosão, que não tinha medo de nada. A única coisa que iria parar ele era a morte. O Esquadrão da Morte, da época da Ditadura, matou ele”.

O batera, que na época ainda estava no colégio, conta que existia um respeito na escola também. Alguns alunos queriam participar daquela loucura. “Teve dia que eu emendei a noitada com a aula. Peguei um táxi, acompanhado de uma prostituta, com os peitos de fora, que me deixou na porta da escola. Era algo bem surreal”.

 

Continua…