Para os apaixonados por vinis, a conta sobre o real valor de um disco está na cabeça. Um disco raro dos Rolling Stones ou Beatles, em estado impecável, custa, em média, entre R$ 180,00 e R$ 350,00. Um LP novo do Pink Floyd, com som remasterizado, pôster, livreto, pesando 180g, o famoso bolachão, varia de R$ 190,00 até R$ 350,00.
Agora, imagine a surpresa que tive quando me deparei, em uma banquinha na feira da Benedito Calixto, em São Paulo, com o clássico nacional. As Crianças da Nova Floresta, principal trabalho da banda santista Recordando o Vale das Maçãs. Em estado impecável, tanto o disco como a capa, ainda observava quando o vendedor logo anunciou o preço: “R$ 550,00. Se pagar em dinheiro, dou um desconto. Esse é bem raro”, disse.
Infelizmente fui obrigado a desistir da minha aquisição. Fui buscar o valor no Mercado Livre e tomei outro susto. O preço varia entre R$ 320,00 e R$ 650,00. Nada que espante o responsável por essa obra prima do rock progressivo brasileiro. “Essa valorização é normal para trabalhos fora de catálogos, procurados por colecionadores. Porém, normalmente, a maioria das bandas fica no esquecimento. Sendo assim, o motivo mais importante dessa valorização foi a continuidade do trabalho durante tantos anos, algo que ajudou a divulgar a marca Recordando o Vale das Maçãs”, explica o guitarrista e fundador da banda, Fernando Pacheco, que atualmente mora em Minas Gerais.
Pacheco conta que desde 1995 voltou a dar prioridade para a carreira da banda, convidando músicos profissionais de formação acadêmica e clássica. “O rock progressivo é a fusão do rock com o clássico sinfônico. Para se conseguir uma alta performance, nesse estilo, dependemos de vários fatores técnicos de equipamentos etc. Porém, para se tocar um estilo fusion de rock e música clássica, é fundamental que os músicos tenham essas duas formações, uma prática e a outra acadêmica, respectivamente”.
Celeiro de bandas boas desde os anos 1960, Santos vivia intensamente a fase dos clubes, dominada por muito tempo pelo Pop Six, Blow Up, entre outros nomes marcantes, quando o Recordando o Vale das Maçãs (RVM) fez suas primeiras apresentações, em 1974.
A estreia aconteceu em Ouro Fino, em Minas Gerais, local onde os santistas Fernando Pacheco e Fernando Motta moravam à época. Junto com eles, Domingos Mariotti, o outro membro da formação, ajudou no início das composições.
No segundo semestre do mesmo ano, Pacheco e Motta retornaram a Santos, onde emplacaram o segundo show, dessa vez no Clube XV. Naquele instante, o grupo já contava com outros dois integrantes: João Paulo e Jair Freitas.
Contemporâneo de um cenário efervescente que tinha nomes como Bacamarte, A Barca do Sol, Terreno Baldio, Os Mutantes, O Terço, Sagrado Coração da Terra, Bixo da Seda, Som Nosso de Cada Dia, Som Imaginário, Moto Perpétuo, Secos e Molhados e Casa das Máquinas, o RVM foi para o estúdio gravar o primeiro disco, As Crianças da Nova Floresta, em 1977.
Além de Pacheco (guitarra) e Motta (violão), o RVM gravou esse clássico com Luiz Aranha (violino), Ronaldo Mesquita (baixo), Moacyr Amaral (flauta), Milton Bernardes (bateria), Eliseu de Oliveira (teclado) e Eduardo Assad (tecladista convidado).
Sem exagerar em virtuosismo, o disco trouxe canções repletas de histórias de alegria, superação, força de vontade e misticismo. Quem escuta o trabalho do RVM consegue perceber influências de bandas dos anos 1960 e 1970, mas também um pouco de música clássica e jazz.
“No início nós não tínhamos um estilo definido, não tínhamos conhecimento da forma musical que fazíamos, pois existia muita influência de outros compositores que fizeram parte do RVM. Foram várias formações diferentes em pouco espaço de tempo. O RVM foi rotulado como uma banda de rock progressivo, porque nos shows, fora dos festivais e também fora repertório gravado no primeiro LP e no primeiro compacto (1982), nós tínhamos duas composições que eram rock progressivo clássico sinfônico (Himalaia e Ciclo da Vida), mas essas duas composições não foram gravadas nos dois primeiros discos”.
Para Pacheco, os primeiros trabalhos, definitivamente, não podem ser chamados de rock progressivo. “O LP é uma mistura de estilos, do lado 1 tem pop rock, música com ritmo de discoteca da época, a faixa Raio de Sol, baladas e música de protesto/festival. A música do lado 2 passou a ser rock progressivo na versão instrumental gravada no CD, em 1993. Porém, no LP, versão cantada, são fragmentos de músicas com mensagens próximas a mensagens religiosas. Não é rock progressivo, o arranjo não se apresenta com o peso de um rock, por exemplo. O compacto tem uma lado que é música romântica e outro com country music”.
Com o apoio da GTA, banda teve grande alcanço
O público mais novo pode até desconhecer, mas o Recordando o Vale das Maçãs conseguiu cavar o seu espaço na grande mídia quando foi contratado pela GTA, ligada à Rede Tupi de Televisão, para o lançamento do primeiro LP, em 1977. “Com isso, tínhamos propagandas com seis inserções diárias na TV, bem como participações constantes no
programa Almoço com as Estrelas, apresentado por Airton e Lolita Rodrigues”, recorda Pacheco.
A extinção da TV Tupi e suas empresas no início de 1980 levou o RVM a perder espaço na grande mídia, mas nada que abalasse os planos de Pacheco.
A formação do Recordando de 1982, segundo o fundador da banda, tinham “músicos com suas vidas direcionadas para outras profissões e, em razão disso, resolveram que o RVM deveria encerrar suas atividades, para que cada um seguisse o seu caminho”.
“Nesse ano já completavam três anos sem gravadora, por isso esse compacto (Sorriso de Verão/Flores na Estrada) foi lançamento independente, e as dificuldades de mercado ajudaram para essa decisão. Eu, particularmente não tinha interesse em parar com o RVM, porque sempre fui músico profissional, mas tive de concordar com a maioria, e um mês depois dessa interrupção dos trabalhos do RVM, mudei para Minas Gerais onde comecei uma nova etapa do RVM, a fase instrumental no estilo do rock progressivo”.
Depois da mudança para Minas Gerais, Pacheco conta que as mudanças principais foram a prioridade em trabalhar com profissionais da música, direcionar o estilo para o rock progressivo instrumental, além de distribuir os discos do RVM no exterior, pois no Brasil esse estilo tinha perdido espaço na grande mídia desde o início da década de 1980.
A partir de 1986, a banda obteve grandes conquistas no mercado internacional, na Europa e Japão, com a distribuição do LP Himalaia e com premiações do CD As Crianças da Nova Floresta II, de 1993, na França e na Noruega. Tais feitos resultaram num convite oficial da Embaixada do Brasil na França, para uma apresentação como representantes do País, na Fête de la musique, em Paris, em 1997.
“Depois que nosso trabalho teve continuidade em Minas Gerais, tivemos conquistas importantes em toda a comunidade europeia, incluindo apoio da gravadora francesa Musea”.
A banda continua em atividade e a formação atual está completando 14 anos. Estão no RVM: Tom Zé Bortoloto (bateria), Giuliano Tiburzio (baixo), Lael Campos (teclados) e Fernando Pacheco (guitarra).
A banda, no entanto, não está com nenhum projeto de disco novo ou livro. “Para isso dependemos de convites de gravadoras ou editoras. Os mercados de ambos não estão muito convidativos para esse tipo de investimento”.
Contexto histórico de 1977 em Santos e no mundo
Em 1977, ano de lançamento do primeiro disco do Recordando o Vale das Maçãs, As Crianças da Nova Floresta, o Campeonato Paulista contava com dois representantes do futebol santista: Santos e Portuguesa Santista. Nenhum dos dois, no entanto, teve um desempenho satisfatório. O Peixe ficou em oitavo lugar, enquanto a Briosa terminou a
competição na última posição.
O Campeonato Paulista daquela temporada ficou marcado pela quebra do jejum de títulos de um grande clube, o Corinthians. Depois de amargar 23 anos sem nenhuma conquista, o alvinegro da Capital derrotou a Ponte Preta por 1 a 0, no terceiro jogo, com o histórico gol de Basílio, no Estádio do Morumbi.
À época, Santos continuava sob intervenção e o prefeito nomeado da vez era Antônio Manoel de Carvalho. Considerado um sujeito de pavio curto, Carvalho se manteve no posto entre 1974 e 1979. No âmbito nacional, o presidente da República era Ernesto Geisel, que aprontou várias naquele ano: fechou o Congresso Nacional e sancionou a lei que regulamenta o divórcio.
Mas se fugirmos da política, o assunto fica mais interessante. Enquanto no Reino Unido e nos Estados Unidos, o punk rock chegava com toda força para contestar tudo que estava errado, com o Sex Pistols, Ramones e The Clash, no Brasil, o escritor baiano Jorge Amado lançava o romance Tieta do Agreste.