Quando divulgamos a lista das 100 maiores bandas da história do rock santista, em setembro passado, muitos leitores ficaram surpresos com a quantidade de nomes bons na região. Um deles em especial despertou atenção, o Harry. A banda que ficou na quarta posição, atrás apenas do Vulcano, Charlie Brown Jr e Garage Fuzz, soa desconhecida para o público mais jovem, mas é considerada um clássico cult para as turmas dos anos 1980 e 1990.
Antes de sua estreia, em 1985, o vocalista Johnny Hansen formou vários projetos, passou pela Vulcano, mas foi na Bi-Sex que alcançou um sucesso comercial na região. A satisfação, no entanto, veio com a Harry, onde teve a companhia do amigo e ex-Bi-Sex, Cesar Di Giacomo.
A Bi-Sex com a New Wave
“Cortamos new wave”. Os cartazes dos salões de beleza já ditavam qual era a tendência que invadiria Santos no início dos anos 1980. O movimento new wave tinha forte apelo popular na Cidade. “Era normal encontrar cover do Billy Idol nas ruas e não era o Supla”, lembra Johnny Hansen.
Para tentar aproveitar a nova onda, Hansen e o amigo César Di Giacomo, que tinham montado vários projetos, anteriormente, como o Self Destructor, Atmosphere e Futurama, criaram o Bi-Sex em 1984. Som com influência de Lover Boy e Blondie.
“Eram darks demais (os projetos) para o rock bobo alegre que se fazia então. Por isso tentamos o Bi-Sex. Seria um jeito de aproveitar a onda de todo mundo estar ganhando uma grana”.
Para o vocal, a dupla convidou Denise Tesluki, que foi apresentada por um baixista que passou pela banda.
As oportunidades surgiram rápido para a Bi-Sex. Radialistas, donos de casas de shows e público confiaram muito no sucesso do trio. A música Magia chegou a ocupar o segundo lugar nas paradas das rádios Tri FM e Guarujá FM.
Na região, a Bi-Sex tocou em tudo quanto era canto: Heavy Metal, Clube XV, Internacional, Blitz, Praia Grande, Guarujá. “Em São Paulo, fizemos o Madame Satã algumas vezes, e inauguramos o espaço de shows do Carbono14”, recorda Hansen.
“O lance do Bi-Sex foi diferente. Nós percebemos, quando estourou a new wave no Brasil, que se continuássemos cantando em inglês, não iríamos chegar a lugar nenhum. Então resolvemos achar uma maneira de conseguir viver da música”, explica Di Giacomo.
Hansen conta que a banda gravou uma fita demo, que estourou nas rádios. “Ficávamos todo dia em 2º lugar nas mais pedidas. Na cola disso, a RCA (gravadora) se interessou pela gente, e nos cedeu horas de estúdio para gravarmos duas musicas, que eles poderiam aprovar ou não”.
Mas logo após a gravação, um imprevisto tirou a banda do caminho. Grillo, baixista da banda, foi morto acidentalmente por um disparo de arma de fogo. “Todo mundo deu um breque”.
Para Di Giacomo faltou um pouco de sorte para o Bi-Sex. “Na época, o tal de Manoel Poladian (produtor) queria lançar o RPM, do Paulo Ricardo. A CBS ia lançar uma coletânea de bandas que estavam para decolar e nós fomos chamados para participar. Fomos entrevistados pelo Luis Maluly e o Marcos Mainard, mas o Metrô entrou no nosso lugar”.
Di Giacomo revela que um dos motivos para o grupo não ter estourado foi a falta de autenticação do som. “O Bi-Sex era muito fake. Muito forçado. O Hansen tocar aquilo era difícil. Ele usava Kilt, aquela saia escocesa, sem nada por baixo. Ai era pra agredir. A gente nunca foi de agradar a imprensa. Até tocávamos, às vezes, de costas para a platéia”.
O início da trajetória do Harry
Em 1985, após a tentativa frustrada de ganhar dinheiro com a banda Bi-Sex, Johnny Hansen e César Di Giacomo decidiram produzir um som novo. Influenciados por The Clash, Kraftwerk e Joy Division, a dupla criou o Harry and The Addicts. Na formação, Hansen no vocal e guitarra, Di Giacomo, bateria, Richard Johnsson, baixo, e Roberto Verta, teclado.
A estreia da nova banda de Hansen e Di Giacomo foi no Torto, em 18 de dezembro de 1985. A casa, por sinal, foi palco de várias edições do Harry Xmas, show que eles faziam anualmente, sempre em dezembro.
Alguns meses depois da apresentação, a banda optou por excluir The Addicts do nome e gravou o primeiro registro fonográfico, o EP Caos. Um trabalho com forte influência de punk rock e com algumas letras em português.
Dois anos depois, a banda lançou, pela mesma gravadora, a Wop Bob, seu primeiro disco: Fairy Tales, considerado um dos discos mais emblemáticos do underground brasileiro. Mantendo de certa forma os pés no rock, esse trabalho apresenta os primeiros flertes com o eletrônico. O som fica com muitos sintetizadores, na linha dos alemães do Kraftwerk, influência clara na banda de Hansen.
“Tocamos nas principais casas de São Paulo nos anos 1980: Ácido Plastico, Rose Bom Bom, Dama Xoc, Aeroanta, Anny 44, Cais, além de lugares no Rio de Janeiro, Sul e capitais do Nordeste”, conta Hansen.
O segundo disco, Vessels Town, lançado em 1990, marca a saída de César Di Giacomo da banda. O baterista foi “trocado” por uma bateria eletrônica. “Eu já não era mais útil no som do Harry, fui substituído por um robô”, comenta o músico.
O LP é um grande marco do synthpop e Electronic Body Music (EBM) no Brasil. O som era tão moderno para época que o álbum foi mais bem recebido na Europa que no Brasil. “Mandamos cópias para Inglaterra e fomos atrás dos homens-fortes das rádios. Depois de um tempo, recebemos alguns elogios vindos da Terra da Rainha”, explica Di Giacomo.
Apesar dos contatos no exterior, as coisas esfriaram para o Harry. Em 1996, a banda começou a gravar um novo disco, mas devido à falta de tempo e à distância entre os integrantes, o projeto teve de ser abandonado no meio. Com Verta no Rio de Janeiro, Hansen no Ceará e Johnson no interior de São Paulo, a situação tornou-se insustentável e a banda resolveu encerrar suas atividades.
Tal intervalo na trajetória explica um pouco o desconhecimento de parte do público com o Harry, que ficou mais marcado como um nome cult entre os roqueiros.
Nove anos depois do fim do grupo, em 2005, os integrantes do Harry voltaram à ativa. Novamente reunidos, Hansen, Di Giacomo, Verta e Johnsson lançaram o box Taxidermy– Boxing Harry, com versões remasterizadas e faixas extras de Fairy Tales e Vessels’ Town, além de um CD com raridades, remixes e algumas composições inéditas do projeto de 1996.
Mas o retorno não durou muito tempo. Pelo mesmo motivo da primeira parada, o Harry trocou novamente a formação. “A coisa foi esfriando devido aos compromissos dos outros integrantes”, conta Hansen.
O vocalista, então, reformou a banda em 2009, com Ricardo Santos (Downward Path e In Auroram) e passou a chamar H.A.R.R.Y. and The Addict. Em um curto prazo, conseguiu um feedback positivo do público e produtores de shows. “Abrimos para a banda belga Vômito Negro e ganhamos um tributo, com outras bandas tocando nossas músicas”.
Eleita a quarta maior banda de rock santista na história, em pesquisa de A Tribuna / Blog n’ Roll, o Harry segue na ativa. Há 11 anos mantém um line-up inalterado: Hansen, Di Giacomo, Richard K. Johnsson, Lee Luthier e Marcelo Marreco (ex-Mig19).
Além dos shows, a Harry segue produzindo em estúdio. Após lançar Electric Fairy Tales, em 2014, que contém sete das dez músicas do Fairy Tales regravadas em arranjos elétricos mais nove faixas inéditas, a banda prepara a chegada de The Dark Passenger, previsto para este ano. E não para por ai. One Shot, One Kill, o sucessor do próximo disco já começou a ser gravado.
Causos do Hansen
A história do rock está repleta de lendas e fatos inusitados. Quem nunca ouviu falar que Keith Richards, guitarrista do Rolling Stones, trocou todo o sangue do corpo? Ou que Ozzy Osbourne comia morcegos?
O rock santista não fica atrás. Também tem seus contos interessantes. Johnny Hansen, do Harry, conta algumas de suas façanhas. Ele é considerado uma das maiores figuras do rock santista. O guitarrista grandalhão se diferenciava com suas ideias. Seu pensamento era muito avançado para a época e seus causos merecem destaque.
Festa de bacana com show de horrores (por Hansen)
“Em 1988, o Harry estava no estúdio Big Bang, gravando o Fairy Tales. Lá fiquei muito amigo dos gêmeos Marco e Laura Mattolli, que fariam naquele sábado uma festa de aniversário em casa. Por sinal, era daquelas que vemos em novela das oito.
Toda a nata do rock paulista da época estava lá. Então eu e o Cesár (Di Giacomo)chegamos por volta da meia noite naquela casa fantástica. Não havia ninguém ainda e a mãe deles nos mostrou uma mesa cheia de garrafas de Scotch. Eu achei que haveria comida na festa, mas me enganei.
Depois de um bom tempo enxugando as garrafas de uísque sentado em uma poltrona no meio da sala, eu esqueci o que eu fiz na festa. Meus amigos não. E me contaram que comecei a passar mal e vomitei no meio da sala.
A aniversariante Laura pediu que os dois DJs da festa, Arthur Veríssimo e Aloi, me tirassem dali. E os dois sacanas subiram comigo aquela escada de espiral, comum em casa de rico, sabe? E me largaram na frente da porta dos pais dos gêmeos.
Comecei então a passar mal ali mesmo, aquela ânsia subia e quando vomito faço um barulho tremendo. Bleeaaaarrrrrgghhhhh! A Laura entrou em desespero. O Aloi e o Arthur me ajudaram a sair dali, cada um segurava um braço.
Ao chegar no topo da escada, a festa parou e todos se viraram para me encarar. Então tive o meu momento supremo de glória… Do alto daquela escada, naquela sala luxuosíssima, com todos me olhando, sendo segurado pelos braços, eu vomito de novo. Dizem que a melhor cena foi a cara que o Arnaldo Antunes (na época no Titãs) fez.
O mais difícil foi chegar para gravar no dia seguinte. Fiquei imaginando mil maneiras de me desculpar, mas não se pede desculpas pelo indesculpável, então cheguei lá e não falei nada”.
Foto de músico não deve ser feita no balcão (por Hansen)
“O Harry ia fazer um show no Teatro Municipal de Santos, em 1991, e eu usava um cabelão parecido com o do Robert Smith (vocalista do The Cure).
Naquela época, tinha surgido um novo jornal na cidade e um dos redatores era um antigo colega de escola que se prontificou a fazer uma entrevista comigo, que correu bem. No dia seguinte, ele mandou um fotógrafo à Blaster (loja de discos que Hansen trabalhava) para ilustrar a matéria.
O cara chegou lá com um conceito brilhante: eu era músico e trabalhava em uma loja de discos, então ele faria a minha foto parado ao lado do balcão de discos.
Meu sangue ferveu e disse para o cara: sobe aqui! Me dirigi à escada em espiral e fui ao banheiro. Sentei na privada, coloquei uma caneta no braço como se fosse uma seringa e disse: bate aí!
Fiquei com tanta raiva que achei melhor sair a matéria sem foto.
Dias depois, tive aquela surpresa… A matéria “Grupo Harry volta a Santos” estava com a foto da privada. Nunca pensei que fossem publicar. Mas o pior é que não dá mesmo para ver que era uma caneta. Como eu já tinha o filme tão queimado em Santos, ninguém se chocou com a foto”.
Missa Negra (por César Di Giacomo)
“Hansen usava uma mortalha vermelha, com um cabelo enorme, batom preto na boca e a cara cheia de Hipoglós. Fomos fazer um show em São Paulo e viajamos em uma caminhonete, eu, Johnnsen e Hansen. Era uma caminhonete velhona que eu tinha, cor azul calcinha.
Na volta para Santos, às 5 da manhã, descemos pela Imigrantes com uma super neblina e o Hansen com Hipoglós e mortalha. Começou a garoar e a lona atrás estava soltando. Eu encostei o carro na saída de um túnel e pedi paro Hansen ir para trás do carro sinalizar para outros carros.
As pessoas ficaram assustadas. Reduziam quando viam alguém na pista. Na hora que viam a figura, aceleravam feito louco, com os olhos arregalados.
Quando chegamos em Santos, descarregamos a caminhonete no estúdio e fomos embora, descendo pelo canal 2 para deixar os caras em casa.
O Hansen me encheu o saco, parei na rua e deixei ele na esquina com a Floriano Peixoto. Eram 6:30, com sol e tudo. Sai ele, com o case da guitarra, a mortalha, o capuz vermelho e o resto de Hipoglós na cara. Passou um carro e um cara gritou: olha o Missa Negra!”
2 Comments
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Rubenval Santos
20 de fevereiro de 2017 at 00:29
Só um detalhe entre vários uma vocalista chamada Denise que cantou acho que no Bisex e no Harry no começo.
Lucas Krempel
20 de fevereiro de 2017 at 00:35
Olá Rubenval, tudo bem?
Você se refere a Denise Tesluki? Ela foi citada no texto.