Insuspeitado, e ainda assim coeso. Colinho, disco que Maria Beraldo lançou pelo selo Risco, parece brincar de unir pontas aparentemente opostas, mas que sob a batuta da artista ganham consistente elo sonoro.
Ao longo de 11 faixas, dez delas de autoria própria, solo ou em parceria, Beraldo traça arcos tesos entre a ousadia sonora e a firmeza estética, ou a ousadia estética para a firmeza sonora.
Percorrendo caminhos impensados entre uma cantada lapidada num funk pouco melódico (Colinho, que abre o disco), e cantando sua vida num samba de João Nogueira (Minha Missão, que encerra o álbum), a artista tece com agudeza semântica um colo provocador – e também provocante – para a canção brasileira.
Construído após um hiato de seis anos – tempo em que passou a assinar a direção musical das peças de Felipe Hirsch, e compôs trilhas para diversos longa-metragens e para o Balé da Cidade, entre outros – Colinho apresenta uma artista cuja soltura e liberdade estruturam cartografias capazes de abarcar memória e futuro, indo do funk ao samba, passando por momentos que podemos apontar como pop, como jazz, como folk, como canção popular, sempre sob uma perspectiva única, na ponta de lança do contemporâneo.
Maria caminha por sonoridades singulares, enquanto conjuga o (seu) sexo no mundo. O álbum ressoa o coletivo a partir de uma investigação particular onde, implícito ou explícito, o sexo e a sexualidade são a lente por onde se vê, e ditam a dinâmica rítmica, melódica e textual de cada composição.
Ainda assim, o disco aflora subjetividades diversas ao longo de seus mais de 40 minutos, criando intimidade com o ouvinte ao tocar sentimentos universais e acolhendo a comunidade queer com a tão importante representatividade.
Colinho ecoa como um jogo onde as fronteiras são borradas e as dualidades diluídas, fazendo com que as 11 canções, nove delas inéditas, soem frescas, e a novidade seja experimentada em cada escuta.
Se o disco abre com um quasi-funk cuja tradicional sentada se converte em colinho, a sequência revela o contrário de maneira não óbvia. Sob uma base jazzística minimalista, com piano de Chicão (seu parceiro de Quartabê) e bateria de Sérgio Machado, Beraldo canta em tom quase melancólico linhas como “mexer o rabo desse jeito” (em Baleia, parceria da artista com Juçara Marçal e Kiko Dinucci e um dos destaques de Delta Estácio Blues, onde foi gravada pela primeira vez, em 2021). Sai de um funk com colinho para uma canção jazzística safada.
Enquanto em Cavala (2018), a artista trazia nas canções a densidade de um grito de saída do armário, em Colinho (2024), ela passa pela elaboração acerca de sua identidade de gênero não binária. O disco acaba por se revelar um objeto artístico-psicanalítico, onde Maria aprofunda temáticas com a leveza de quem abre o coração, livre do que poderia soar um monotema, a partir de um lugar melhor resolvido no mundo.
Os processos de composição e produção do disco se mostram matéria das elaborações mais pessoais da artista, que lança o olhar para sua infância e puxa o fio até os dias de hoje, trazendo consigo o piano, o violão, o jazz e o samba que tocavam em sua casa, e o choro – gênero musical e lágrimas – para dentro das sonoridades eletrônicas e pops que Beraldo frequenta e desenvolve.
Compondo a trama de pontes e elos que Colinho inventa, está Guma, quarta faixa do álbum, que tem letra livremente adaptada de um trecho de James Baldwin no livro O Quarto de Giovanni, e que foi batizada em homenagem ao personagem de Jorge Amado em Mar Morto – Beraldo conecta Baldwin e Jorge Amado através da metáfora mar-paixão, explorada pelos dois autores.
Musicalmente, a canção traz melodia inspirada em Frank Ocean, que através de Maria acaba por tanger sonoridades a la Hermeto Pascoal, enquanto o arranjo para quarteto de cordas evoca um lirismo Jobiniano.
O disco segue brincando com frescor por diferentes caminhos de abordagem. Em Truco, feita para o premiado Regra 34, de Julia Murat, Maria transmuta violência em jogo, com versos que escalam um revide às opressões: “você mete tudo / eu truco / vou comer você“.
Já em Matagal, que conta com a participação de Zélia Duncan, a tensão – e o tesão – da disputa dão lugar ao jogo amoroso, num folk que celebra o encontro com beleza tocante, onde tudo parece suspenso e leve, efeito causado pelo encontro das vozes e pelo violão de aço de timbre particularmente aconchegante.
As conexões feitas por Beraldo brilham ainda em Masc, quando ela canta – em vocais que divide com Ana Frango Elétrico – “Inside my chest a little boy scrolls a bunch of scenes“, eco bonito dos versos de Milton Nascimento e Fernando Brant “Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão“.
A investigação de si e do outro, e a partilha dessas descobertas, também se acende em Quem eu sou, parceria de Beraldo com Negro Leo, que também canta na faixa. Num gancho natural com uma das mais destacadas canções do artista (Jovem Tirano Príncipe Besta), Maria e Leo cantam sobre humanidade, entre sonho e destruição, no sintético refrão “a fauna brinca de se estrepar, brinca até cansar / a fauna brinca de se ferrar, a fauna brinca até sonhar”.
O disco encerra com um samba, numa reafirmação do tamanho de Maria, do tamanho que a música tem em sua vida, do tamanho da canção brasileira – capaz de abarcar tanto -, do tamanho que Colinho propõe o salto – e o acolhimento – ao ouvinte.
Produzido por Maria Beraldo e Tó Brandileone, o álbum conta também com reconhecidos instrumentistas da música brasileira contemporânea como Thiago França, Rodrigo Campos, Fábio Sá, Sérgio Machado, Marcelo Cabral, Chicão, entre outros – além de Maria e Tó, que tocam inúmeros instrumentos nas faixas.
Colinho conta ainda com arranjos para cordas escritos por Beraldo, e cria pontes entre os universos eletrônico e acústico, passeando pelo jazz, punk, pop, música eletrônica, música de ruído e de concerto, sem nunca perder o foco na canção.
Com caráter autobiográfico, Colinho dá continuidade ao caminho aberto por Cavala, agora com um toque a mais de alegria e prazer e um toque a menos de dor. Entre a poesia e a sacanagem, um colo à população queer.