Entrevista | Digo Amazonas e a Multidão – “Fazemos rock com música brasileira”

Entrevista | Digo Amazonas e a Multidão – “Fazemos rock com música brasileira”

O primeiro álbum de Digo Amazonas e a Multidão “Qual Brasil?” chega como um manifesto contemporâneo sobre o Brasil, atravessando camadas de história, política, identidade e pertencimento. O artista mistura rock, ritmos brasileiros e influências que vão do punk à Chico Science a Nação Zumbi, criando uma estética que abraça o passado para reinterpretar o presente. O disco nasce como uma viagem pelas contradições brasileiras, um mosaico que revisita 100 anos de cultura, dos ecos modernistas ao caos polarizado dos dias de hoje.

No centro do trabalho, aparecem reflexões sobre patriotismo, meio ambiente, tecnologia e o impacto das redes sociais na vida cotidiana. A narrativa costura crítica social, memória histórica e um olhar atento para os movimentos ambientais, políticos e culturais que moldam o país. A intenção de Digo não é oferecer respostas prontas, mas provocar perguntas sobre o que significa ser brasileiro em 2025.

E já que é para falar sobre o Brasil, a banda escolheu o Dia da Bandeira (19/11) para lançar o primeiro videoclipe “Qual Brasil”.

Em entrevista ao Blog N’ Roll, Digo Amazonas detalha suas influências, o processo de pesquisa, a presença da inteligência artificial no álbum, o impacto de sua convivência com povos indígenas e como a história continua sendo um fio condutor essencial em sua criação artística.

Como você se apresenta para o público que está te descobrindo agora? Onde você se encaixa e quais são suas influências?

Cara, eu acho que essa pergunta é boa do jeito que você colocou, porque é sempre difícil ter que se encaixar numa caixinha tão fechada. Eu acho que eu fazemos rock, não tem dúvidas. Nós fazemos rock com música brasileira, rock com ritmos brasileiros, e influências tenho muitas. Sou bem eclético, a rapaziada da banda também, mas a gente fez uma opção nesse álbum de fazer uma fusão de música brasileira, ritmos brasileiros, com punk rock. A gente tem influências muito evidentes, como Nação Zumbi, mas eu diria que fazemos isso de uma forma caindo mais para o punk. Foi o jeito que a gente tentou estruturar o conceito do álbum.

Quando ouvi o álbum, senti uma mistura entre Dead Fish e Chico Science.

Pô, que honra!

No álbum você lida com patriotismo, símbolos nacionais e também faz uma viagem histórica que abrange duas décadas de experiência pessoal. Como você moldou essa visão de Brasil para retratar no disco?

Eu tentei fazer uma viagem do Brasil de agora até o Brasil de 100 ou até 500 anos atrás. A inspiração veio no meio do processo, que foi o Manifesto Pau Brasil, que tem exatamente 100 anos. Sempre gostei muito do modernismo e da obra do Oswald de Andrade. Fui percebendo que a polarização daquela época para disputar uma ideia de identidade brasileira tinha muita similaridade com a polarização atual. Claro que não é igual, mas achei esses paralelos muito interessantes. No manifesto, quando ele lançou, surgiu na sequência o verde-amarelismo, que se contrapôs a ele e depois virou um movimento que desembocou num fascismo tupiniquim. Isso me ajudou a entender como fazer essas relações. No álbum, eu vejo que falo muito do Brasil contemporâneo, mas para falar dele, a gente precisa falar da história. Então tem muita pesquisa histórica e também uma parte de sonho. É o Brasil de hoje, de ontem e de amanhã. E o álbum lança essa pergunta: qual é o Brasil que a gente quer?

Quando falamos de protesto, muitos pensam só em política. Mas você vai além e traz temas como natureza, meio ambiente e tecnologia. Como esses assuntos entraram no álbum?

Falando primeiro de natureza e meio ambiente, isso sempre foi uma coisa que me moveu desde muito jovem. Sempre fui engajado e me envolvi com movimentos ambientais e socioambientais. Acabei de voltar da COP30, em Belém, onde acompanhei ativistas e participei de protestos. Hoje, falar de meio ambiente não é só falar de natureza. Acho que tudo está misturado. Então isso entrou de forma natural e virou quase um tema central do álbum. Os outros temas vieram dessa vivência de todo mundo hoje: a gente é muito grudado nas redes sociais. A questão da inteligência artificial entrou no final das composições, quase durante a gravação, porque é um assunto que está em tudo. Eu trago críticas ao uso excessivo da tecnologia, mas não é uma crítica utópica, como se isso tivesse que acabar. Tanto que fiz uma música com participação de uma inteligência artificial. O desafio foi misturar tudo isso. Teve um momento em que pensei em dividir o álbum em dois EPs, um sobre meio ambiente e outro sobre tecnologia, mas quando fomos fechar o repertório, percebi que cabia tudo na mesma história.

Você cita personagens como Brás Cubas, Chico Mendes e autores na construção das letras. Como foi trazer esses elementos históricos, e como enxerga o papel da música nesse sentido hoje?

Para mim veio naturalmente porque sou muito apaixonado por história. Eu até queria ter feito faculdade de história. Pesquisa histórica me ajuda a entender o presente. Sempre gostei de citações nas músicas, de trazer camadas que não estão no óbvio. O rap faz isso muito bem. Gosto dessa dinâmica. O próprio Chico Science fazia isso de forma incrível. Ele citava Josué de Castro e falava de fome. Se você vai pesquisar, descobre que ele denunciou a fome no Brasil. A obra tem profundidade. E isso provoca a pessoa a querer saber mais. Na música sobre Chico Mendes, conto literalmente o que aconteceu. A primeira parte é uma entrevista que ele deu antes de morrer, porque sabia que estava sendo perseguido. Eu falo exatamente o que ele fala ali e com o consentimento da família. Depois coloco o áudio de rádio anunciando a morte dele. Gosto de contar essa história. Sobre Brás Cubas, foi uma cereja do bolo no final. O álbum estava pronto e um amigo meu compartilhou a primeira frase do livro. Li de novo e vi que tinha tudo a ver com a música, porque é um eu lírico defunto. Busquei o livro, vi que era domínio público e gravei ali mesmo, no celular, dentro do armário para simular som de caixão. Ficou esquisito, mas era para ser assim. Registrei a música como participação do Machado de Assis. Tudo certo.

A música T.I. Terra Indígena fala da convivência com jovens guaranis. Como foi esse encontro e o que isso transformou na sua visão de território e sobre o Pico do Jaraguá?

Eu trabalho muito com ativismo socioambiental há vários anos. Trabalho bastante em colaboração com povos indígenas. Mas no Jaraguá especificamente eu não conhecia bem a galera. Tinha ido a um festival lá e um amigo me apresentou o Thiago Guarani, uma liderança jovem. Comecei a acompanhar a luta deles. É uma terra indígena dentro de São Paulo, rodeada pela cidade. É uma situação muito louca. A luta deles é pela sobrevivência e pela preservação cultural. Fiquei com vontade de chamar um coro Guarani para o álbum, porque essa cultura de corais é muito bonita. O Thiago me apresentou jovens ligados à música, como o Fabrício Lakost, que compõe outras coisas além dos corais. E isso transformou muito minha visão. Essa convivência me mostrou outra forma de entender território, cultura e resistência.

Você comentou que chegou a pensar em estudar História, mas acabou se formando em percussão. Em músicas como Matagal e Manifestação Animal, existe uma força rítmica muito grande. Como foi o impacto da pós-graduação no seu processo criativo? Como o Digo que entrou na pós saiu diferente do que terminou o curso?

Essa parte acadêmica veio mais para consolidar algo que eu já tinha na prática. Minha formação inicial como músico é na bateria. Eu toco desde os 15 anos, sempre toquei muito rock and roll e fiz parte de várias bandas do gênero. Depois comecei a ir mais para percussão, tocar alfaia, me envolver com maracatu… me envolvi com bloco de carnaval e fui um dos cofundadores do bloco Kaya na Gandaia, que é de samba reggae. Me aproximei muito do mestre Gabito Toledo, meu irmão e professor. Faço parte do carnaval de rua há mais de 13 anos. Nessas vivências você mexe com muito ritmo brasileiro, toca na rua, repete isso ano após ano. Fui ficando menos baterista e mais percussionista, ou, como eu gosto de dizer, mais batuqueiro. Mergulhei nesse universo rítmico brasileiro e me apaixonei pelas manifestações populares de rua.

Quando entrei na pós, ela era organizada pelo Ari Colares, um baita estudioso, talvez um dos que mais manja desse tema. É um percussionista incrível. Na pós eu tive aula com grandes professores de várias linguagens e ritmos, então muita coisa que eu tinha aprendido na prática se consolidou ali. A pandemia fez o curso virar online, então a parte prática diminuiu, e tivemos muita teoria. E eu gosto de dizer que estudar percussão brasileira é estudar a história do Brasil. Cada ritmo tem um porquê. A origem africana, as migrações, as regiões… tudo tem profundidade. Durante a pós, várias fichas começaram a cair. Muitas músicas do álbum eu já tinha rascunhado, já mexia nelas, já tinha tentado formar banda antes. A pós foi quando tudo começou a se fechar melhor. Eu pensava: essa aqui pode ser um coco, essa aqui mistura maracatu, essa aqui vou colocar boi de matraca. Fui juntando vivências com aprendizados.

O início do álbum foi o meu TCC. Na época, ainda era um EP. Gravei cinco músicas sozinho, tocando tudo aqui em casa, no meu quarto. Quando concluí o projeto, pensei: agora vou montar a banda, fazer arranjos novos, compor mais algumas… Na verdade, eles me convenceram a fazer um álbum. Eu ia lançar só um EP, mas insistiram: “faz logo um álbum”. A pós-graduação foi o empurrão que faltava. Eu queria fazer esse álbum há muito tempo, mas faltava esse mergulho e essa oportunidade de aprofundar o assunto.

Dentro desse mergulho, o que mais te surpreendeu na história da música brasileira? Algo que você descobriu e pensou: “caramba, não imaginava isso”?

É difícil responder porque são muitas histórias maravilhosas. Cada assunto novo surpreende. Mas um ritmo que me marcou muito foi o boi do Maranhão e o boi de matraca. Eu já tinha estado no Maranhão e visto, mas nunca me aprofundado. Tivemos uma matéria específica e o professor, que depois foi meu orientador, mexeu muito comigo. Esse ritmo eu não teria explorado se não fosse o curso. Toda aquela polirritmia acabou dando a base da música Algo Rítmico.

Agora falando sobre o presente e o futuro: como estão os próximos passos? Agenda, shows, planejamento?

Agora é exatamente esse momento. A gente não vê a hora de sair do digital e ir para os palcos. Estamos começando a fechar os primeiros shows. Ainda não temos a data, mas o show de lançamento vai rolar em breve. Espero anunciar muito em breve. O foco dos próximos dois anos é levar esse trabalho para o palco. É um som de banda, de ao vivo. Acho que ele vai crescer muito. Estou muito feliz com o que gravamos e estamos ensaiando bastante. Estamos ansiosos para fazer essa sonzeira ao vivo e ver o bate-cabeça acontecer.

E sobre o clipe do “Qual Brasil”? Como você enxerga esse trabalho dentro da estética e da mensagem do álbum?

Quem quiser conhecer, o clipe do Qual Brasil é uma ótima introdução para o álbum. Ele reúne imagens do Brasil real, plural. Sou muito grato à Maranha Filmes, uma grande parceira de muitos anos, que trabalha muito com o Brasil. Eles simplesmente tinham todas aquelas imagens. Não dava para fazer um clipe melhor para introduzir o álbum. Então convido as pessoas a assistirem, porque se verem o clipe, tenho certeza que vão querer ouvir o resto do álbum.